Internacional

Regenerar ou reconstruir a esquerda

Manifestantes de esquerda durante um ato de “mulheres pela democracia e contra o golpe”, realizado no dia 2 de junho, no Rio de Janeiro. No Brasil se discute se a esquerda pode sair de sua crise apenas se regenerando, ou se precisa se reconstruir totalmente. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

por Mario Osava, da IPS –

Rio de Janeiro, Brasil, 6/6/2016 – Marta vive muito deprimida desde o dia 12 de maio, quando a presidente Dilma Rousseff foi afastada do cargo para aguardar o julgamento em um processo de impeachment no Senado. Chora cada vez que houve notícias políticas, onipresentes hoje em dia no Brasil. A frustração dessa economista sexagenária, que pediu para não ser identificada, é compartilhada por muitos que, sem serem militantes do PT, no governo desde 2003, integram uma esquerda que participou do processo que tirou da pobreza mais de dez milhões de famílias brasileiras e incentivou sonhos de um país mais próspero e menos desigual.

O fim de um dos raros períodos em que a esquerda teve o poder no Brasil é celebrado com euforia entre os novos governantes de centro-direita. A coalizão circunstancial de mais de 20 partidos herda uma recessão econômica que já dura dois anos, mais de 11 milhões de desempregados e déficit fiscal que limita as ações governamentais. Nesse contexto, já se busca novos caminhos para a esquerda no Brasil, embora teoricamente Dilma possa recuperar a Presidência, caso seu julgamento político não tenha dois terços dos 81 senadores a favor de sua destituição.

Uma frente política, “com seu centro de gravidade na esquerda”, é a proposta de Tarso Genro, dirigente do PT que foi ministro da Justiça e da Educação no governo do fundador e líder do partido, Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). “A frente significa um influxo de fora para dentro, para que o PT se reforme em um processo de mudança de seu sistema de alianças. Não creio que uma disputa interna, pelos mecanismos tradicionais do partido, possa transformá-lo tão profundamente como é necessário”, opinou à IPS.

Em sua opinião, é a única via para “regenerar” o PT, que teve vários altos dirigentes e parlamentares envolvidos em escândalos de corrupção, vários deles já condenados. As alianças com partidos conservadores e clientelistas são outros erros nos quais o partido teria incorrido para conquistar e manter o poder. “É necessária e válida uma autocrítica do partido”, admitiu Genro, que defende uma “refundação” do PT desde o escândalo que estourou em 2005, no qual o partido foi acusado de subornar parlamentares para conseguir a aprovação de propostas importantes.

“Mas uma autocrítica verdadeira de qualquer partido de esquerda não se limita a identificar e reconhecer erros cometidos por dirigentes. Deve, sobretudo, revisar seu projeto político e progmático, especialmente na questão democrática”, pontuou Genro. Falta explicar porque o PT, sendo governo, “não se esforçou para promover uma profunda reforma política, nem estabeleceu um sistema de alianças para nos livrar do tipo de gestão do Estado herdado de governos anteriores”, destacou.

Além disso, é preciso dizer quais “mecanismos de controle interno falharam”, permitindo que o partido aceitasse formas ilegais de financiamento de suas campanhas eleitorais, “o que sempre condenou”, ressaltou o ex-ministro. Uma dúvida é se caberá ao PT se regenerar e continuar ditando os rumos da esquerda no Brasil, ou se a crise atual o enfraquecerá ao ponto de dar lugar à formação de outras forças políticas nas correntes progressistas.

A Operação Lava Jato, que há dois anos investiga a corrupção nos negócios da Petrobras, continua destruindo carreiras políticas, depois de prender dezenas de empresários e diretores da companhia. Não se descarta que, a qualquer momento, Lula seja julgado e preso, acusado de ser beneficiário de fundos da Petrobras desviados por grandes construtoras. Nesse caso, provavelmente, não poderia ser candidato nas eleições presidenciais de 2018, conforme antecipou ao falar a respeito.

As eleições municipais de outubro deste ano serão um primeiro teste para o PT, depois de ter vários dirigentes envolvidos nesse escândalo e do provável afastamento definitivo da Dilma. “O PT é um grande partido, com muitos prefeitos e governadores, uma forte organização nacional com base institucional para sobreviver e em algum momento revisar suas posições e repensar o que deve fazer para o futuro”, observou à IPS Maria Hermínia Tavares, professora de Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP).

Entretanto, sua “retórica do golpe”, atribuindo o afastamento de Dilma do poder a um golpe de Estado de novo tipo, do qual o parlamento seria executor, dificulta a autocrítica e a renovação, ao se ver como vítima e não admitir “erros brutais na economia e a corrupção”, afrimou Tavares. Esse discurso é um instrumento importante agora para manter a unidade, resistir ao impeachment da presidente, mas “não ajuda a reeleger governadores, prefeitos e parlamentares, e haverá pressões internas por um discurso novo, eleitoralmente mais aceitável”, apontou a professora.

Segundo Tavares, “o PT, provavelmente, foi um caso único de partido de massas com origem em movimentos da sociedade civil que alimentaram também seu crescimento, e isso dificilmente se reproduzirá”, porque a tendência é a separação entre a política institucional e esses movimentos, como já se nota na Europa. Entretanto, para Dulce Pandolfi, pesquisadora da Fundação Getulio Vargas, “os movimentos sociais são fundamentais para a renovação do partido, são sangue novo”.

Na opinião de Pandolfi, houve um golpe para destituir a presidente e colocar em seu lugar o vice Michel Temer, e as frentes políticas, juntando partidos de esquerda e movimentos sociais, são importantes para lutar contra “ameaças à democracia e aos direitos sociais”. O “PT pode se reconstruir contando com seu capital social, sua quantidade de quadros formados”, mas necessita de “uma autocrítica de sua ingenuidade, ao entrar no mesmo jogo dos partidos tradicionais, e acreditar na impunidade, agindo como se os fins justificassem os meios”.

Para o historiador Daniel Aarão Reis, professor da Universidade Federal Fluminense, estar na oposição fará bem ao PT, depois da “degeneração” que o fato de estar no poder por muitos anos provoca nos partidos. Seus governos, de Lula e depois de Dilma, promoveram avanços em inclusão social, mas suas políticas de conciliação e alianças com a direita e grandes empresas, além de discursos eleitorais depois desmentidos na prática, tiraram a identidade do partido, afirmou este militante do PT até 2005.

Além disso, abandonaram reformas no “sistema político que tritura pessoas” e as corrompe, afirmou Reis, defendendo o fim de doações eleitorais de empresas e fundos públicos para partidos, que proliferam em busca de tais benefícios. O Brasil tem hoje 35 partidos registrados. Se tivessem que se manter com contribuições de seus militantes, metade desses partidos desapareceria”, e criá-los deixaria de ser um negócio, acrescentou. Era assim que o PT se financiavam originalmente.

Para a reconstrução de “uma esquerda capaz de formular programas alternativos”, tanto para melhorar o sistema político como para superar a crise atual, Reis sugere fóruns de intelectuais e “polos independentes” de debates. Não se trata de recompor o PT, mas de um movimento mais amplo, enfatizou. Envolverde/IPS