Internacional

Sede na Nicarágua, país onde a água é parte de seu nome

Os habitantes da comunidade de Santa Isabel, no departamento de Boaco, na Nicarágua, devem percorrer grandes distâncias para retirar água de riachos e charcos, porque as fontes próximas secaram este ano, durante a prolongada estação seca. Foto: Cortesia de Jorge Torres/La Prensa de Nicaragua
Os habitantes da comunidade de Santa Isabel, no departamento de Boaco, na Nicarágua, devem percorrer grandes distâncias para retirar água de riachos e charcos, porque as fontes próximas secaram este ano, durante a prolongada estação seca. Foto: Cortesia de Jorge Torres/La Prensa de Nicaragua

Por José Adán Silva, da IPS – 

Manágua, Nicarágua, 2/6/2015 –A Nicarágua, o país centro-americano com mais fontes de água doce da região e onde o líquido é inclusive parte de seu nome, sofre uma das piores crises desse recurso nos últimos 50 anos, um problema alimentado pela variabilidade climática e agravado pelo desmatamento e a degradação dos solos.

María Esther González, moradora da capital, sofre a escassez em sua vida cotidiana. Ela vive em um bairro pobre do Distrito Uno de Manágua, onde o serviço de água potável funciona menos de duas horas por dia. A insônia crônica é parte da rotina dessa chefe de família em seus últimos quatro anos: todos os dias entre 23 horas e 3 horas, ela deve estar alerta para quando a água chega às torneiras.

No período de duas horas ou menos, González deve encher vários recipientes, lavar roupa e também a pequena moradia, antes que a água seja cortada novamente. “Há quatro anos tenho que estar vigilante nas madrugadas para conseguir pegar o necessário para o dia a dia”, contou à IPS.

Em certas ocasiões, a água desaparece por até três dias seguidos e então as autoridades estatais da Empresa Nicaraguense de Água e Esgoto (Enacal) precisam paliar o problema com a distribuição de água com caminhões-pipa em muitos bairros da capital. Manágua, que também tem a água em seu nome, com pouco mais de 1,6 milhão de habitantes, talvez seja onde mais se percebe a falta de água, porque os protestos de bairros inteiros nas ruas frequentemente aparecem nos meios de comunicação.

Mas a ausência do serviço se estende por todo o país e ameaça o nível de vida de seus 6,1 milhões de habitantes, sobretudo os que moram em zonas rurais. Arístides Álvarez, membro da rede não governamental Comitês de Água Potável e Saneamento, explicou à IPS que nas zonas rurais do centro e oeste do país milhares de famílias sofrem a escassez porque se abastecem de poços e rios que secaram.

Álvarez afirmou, que, por exemplo, em algumas comunidades do departamento de Chinandega, 140 quilômetros a noroeste de Manágua, secaram três rios que abasteciam pelo menos 1.300 famílias rurais, na temporada da seca, que vai de novembro a maio. “Agora as pessoas precisam caminhar longas distâncias para buscar água e os que têm dinheiro compram de donos de terra que têm poços em suas propriedades. O ruim aqui é que nem todos podem comprar água e comida ao mesmo tempo”, apontou.

Segundo o ativista, as famílias rurais esperam desesperadamente pelas chuvas da temporada úmida da Nicarágua, que começa em maio e termina no final de outubro. Mas durante este mês foram poucas e esporádicas.

Ruth Selma Herrera, ex-presidente-executiva da Enacal, destacou à IPS outro problema que afeta o acesso da população à água: o baixo investimento no setor e a má distribuição pública do recurso. “São necessários pelo menos US$ 150 milhões para modernizar a rede de distribuição, porque as tubulações estão obsoletas e as perdas são altíssimas”, apontou à IPS.

As previsões sobre a melhora do problema da escassez no futuro imediato não são animadoras. Segundo as projeções de meados desse mês do Centro de Previsões Climáticas, uma agência do Serviço Nacional de Meteorologia dos Estados Unidos, a probabilidade de o fenômeno El Niño/Oscilação do Sul (Enos) afetar o país e a região centro-americana é de nada menos do que 90%.

O alerta de uma nova seca preocupou a Fundação Nicaraguense para o Desenvolvimento Econômico e Social, pela situação alimentar e nutricional da população do chamado Corredor Seco da Nicarágua, que cobre 33 dos 153 municípios do país e compreende os departamentos de León e Chinandega (noroeste), Estelí, Madriz, Matagalpa e Nueva Segovia (norte).

O temor, expresso em um informe de conjuntura econômica 2015 apresentado em abril, é o de que essa área de mais de um milhão de habitantes volte a reduzir o consumo e a produção de alimentos por perdas de grãos básicos e morte de gado devido à seca, como ocorreu no ano passado.

Em 2014, o governo precisou enviar alimentos, remédios e água com urgência para a região, após ser afetada pela seca causada pelo El Niño, que ciclicamente afeta as costas do Pacífico e de outras regiões da Nicarágua, com grande declínio das precipitações durante a estação úmida, segundo o não governamental Centro Humboldt, especializado na gestão ambiental. A preocupação dessa organização foi compartilhada pela delegação local do Banco Mundial.

Luis Constantino, representante do Banco na Nicarágua, informou ao jornal La Prensa que, diante dessa situação, discute-se atualmente com o governo um plano estratégico de atenção para a zona seca do país. “Focamos em programas de manejo da água. Estamos propondo uma conferência (com especialistas) para discutir as opções para o Corredor Seco, principalmente garantindo que as prefeituras tenham água suficiente para abastecer a população, mas também se pode aproveitar as oportunidades de irrigação para a agricultura e a pecuária”, afirmou Constantino ao jornal local.

Jaime Incer Barquero, cientista nicaraguense e assessor da Presidência da República para temas ambientais, disse à IPS que a mudança climática na Nicarágua se expressa com as incidências do fenômeno El Niño e La Niña, associados com secas e inundações, respectivamente.

Este país conta os dois maiores lagos da América Central, o Xolotlán, de 1.052 quilômetros quadrados e o Cocibolca, com 8.138 quilômetros quadrados. Também possui 26 lagoas, mais de cem rios, quatro represas e cinco das 19 maiores bacias centro-americanas.

Porém, diversas organizações especializadas indicam que a degradação dos solos nicaraguenses chega a um nível dez vezes superior ao máximo estabelecido tecnicamente como permissível ou tolerável para manterem sua produtividade, o que já afeta as fontes de água e continuará afetando. O Centro Internacional de Agricultura Agrária (Ciat) diagnosticou que a Nicarágua degrada sua terra “a um ritmo irreversível”, ao transformar solos com potencial florestal em pastos para a pecuária extensiva.

O nível máximo de tolerância de perda de solo no país é de quatro toneladas (degradadas por más práticas agrícolas e pecuárias) por hectare ao ano, mas a média é de 40 toneladas anuais, revelou o pesquisador do Ciat Carlos Zelaya, durante jornadas ambientais recentes realizadas em Manágua.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) confirmou a magnitude do problema. “Na Nicarágua a degradação dos solos gira em torno dos 30% e na zona ocidental chega a 35%”, afirmou o facilitador de Segurança Alimentar da FAO na Nicarágua, Luis Mejía.

O ambientalista Incer Barquero ressaltou que se essa prática não for revertida, “em menos de 50 anos deixaremos de nos chamar Nicarágua e a água será uma lembrança”. Envolverde/IPS