Internacional

Alegria brasileira, legado contraditório

Os carnavais fazem transbordar a alegria e a festa nas cidades brasileiras, como ocorreu este ano em Olinda, no nordeste do país. Foto: Diego Galba/Prefeitura de Olinda
Os carnavais fazem transbordar a alegria e a festa nas cidades brasileiras, como ocorreu este ano em Olinda, no nordeste do país. Foto: Diego Galba/Prefeitura de Olinda

Por Mario Osava, da IPS – 

Rio de Janeiro, Brasil, 11/2/2016 – A alegria, um reconhecido patrimônio do Brasil que tem sua manifestação mais explosiva no Carnaval, contradiz qualquer lógica. Provem da chaga histórica da escravidão e nega a crise econômica e política que deprime o país. O Carnaval deste ano seguiu a tendência de se prolongar por duas semanas, e foi tão festejado como os anteriores – ou mais –, com as ruas tomadas por multidões, apesar da economia em queda desde o ano passado, da epidemia do vírus zika e de escândalos de corrupção envolvendo crescente quantidade de política.

A África está na raiz desse entusiasmo que faz dançar e cantar dias inteiros. Essa origem, se percebe, por exemplo, ao se visitar Angola e comprovar que 27 anos de guerra civil, com meio milhão de mortos e cem mil mutilados, segundo estimativas considerada parciais, não sacrificaram o riso fácil e o hábito de viver dançando. Na África do Sul, juntar três ou quatro pessoas é o suficiente para que elas comecem a cantar, dançar e rir, observou o veterano e premiado jornalista brasileiro Washington Novaes, em um artigo de junho de 2010, no qual recorda sua experiência de 2002, quando cobriu a Cúpula Mundial do Desenvolvimento, em Johannesburgo.

Surpreso, perguntou a um taxista jovem sobre o fenômeno de seu povo, tão sofrido, onde encontrava tanta alegria”. A resposta foi que “o sofrimento nos ensinou que nossa alegria tem de ser apenas nossa, vir de dentro, nada pode tirar nossa alegria”.Do outro lado do Atlântico algo semelhante acontece em países e regiões que receberam grande quantidade de africanos escravizados, como Cuba e outras nações do Caribe, além do Brasil. Fora dos trópicos, também no sul dos Estados Unidos, povoado por muitos afrodescendentes, há testemunhos desse fenômeno.

Há mais semelhanças entre o Brasil e o sul norte-americano “do que se imagina, inclusive nas momentos ruins, ambos têm um passado escravagista, de violência contra o povo negro, e somos povos alegres”, destacou o cônsul geral dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, James Story, em uma entrevista ao jornal O Globo, no dia 1º de janeiro.A dança, a música e o futebol são áreas onde a alegria aportada pelos descendentes de escravos é mais visível no Brasil, mas é uma influência difusa na vida nacional, ainda que seja mais difícil comprovar como ocorre o contágio em geral.

No Carnaval fica clara sua participação decisiva na popularização da festa, nas ruas, no papel fundamental da percussão, já que os negros são reis do ritmo. Mas essa participação diminuiu em momentos de maior controle oficial da festa e por sua expansão como negócio, restrito aos que podem pagar melhor pelo entretenimento.O momento atual é de popularização. Os blocos resgataram o carnaval de rua, se multiplicando pelo Brasil.

A tendência anterior, acentuada nas últimas décadas do século passado, fazia predominar o espetáculo comercial. As escolas de samba atraíam a atenção, desfilando suas gigantescas alegorias e milhares de figurantes em áreas fechadas, os sambódromos. Suas apresentações se destinavam mais aos espectadores da classe média e às emissoras de televisão, um mercado milionário, turístico e audiovisual, a cada ano excluindo mais os negros.

Na pré-história do Carnaval,houve outras tentativas de enquadrá-lo à religião ou aos bons modos da elite, afastando-o dos pobres. O catolicismo, que lhe deu o nome, procurou fazer da festa um “adeus à carne” antes da quaresma de reflexão e jejum, conciliando com suas origens pagãs, como as bacanais gregas e romanas.No Brasil, os governantes tentaram proibir o precursor do carnaval, conhecido como entrudo –caóticas brincadeiras de rua portuguesas que ganharam grande adesão entre os escravos negros –, e confinar a celebração aos bailes de gala.

Integrantes de um bloco de mulheres dançam portando instrumentos de raízes africanas, em desfile em um bairro do Rio de Janeiro durante o carnaval deste ano, que confirmou o resgate popular da festa. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Integrantes de um bloco de mulheres dançam portando instrumentos de raízes africanas, em desfile em um bairro do Rio de Janeiro durante o carnaval deste ano, que confirmou o resgate popular da festa. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Mas o Carnaval, como baile de rua e com suas canções típicas, só ganhou forma no final do século 19, com forte e crescente participação negra. O samba, que depois se converteria em seu ritmo oficial, surgiu em 1917, como expressão musical de moradores pobres do Rio de Janeiro, de maioria negra.Esse gênero de música permaneceu exclusivo das favelas (com maioria de população negra) até que, décadas depois, as classes médias e brancas o incorporaram aos seus repertórios, se assenhorando do ritmo e suavizando-o como bossa nova.

Uma diversidade de ritmos e gêneros musicais foi criada pelos negros, não só no Brasil, como forma de contagiar de alegria variados povos do mundo. O jazz nos Estados Unidos, o reggae jamaicano, a cúmbia colombiana, o merengue dominicano e o mambo cubano, entre outros.O futebol brasileiro deve sua fase ascendente e mais alegre principalmente aos negros. Nesse caso, o processo foi inverso ao do Carnaval e do samba, começou em 1894 como esporte da elite, proibido aos negros e pobres, até que algumas equipes desafiaram essa regra e incorporaram os excluídos.

O Brasil vive, então, uma popularização do futebol, com heróis como Pelé, um negro, e Garrincha, um mulato justamente apelidado de “alegria do povo”. Com eles o Brasil venceu as Copas do Mundo de 1958, 1962 e 1970, conquistando admiradores em todo o mundo.Houve outros ídolos negros, antes e depois desse apogeu, que ajudaram a fazer do futebol uma fonte de alegria para os brasileiros, mas também exemplos que desnudaram e talvez aumentaram o persistente racismo no país.

Três negros da seleção de 1950 foram considerados pela população os principais culpados da derrota diante do Uruguai, consideradauma tragédia nacional, que impediu o Brasil de ganhar o primeiro mundial em seu próprio templo do futebol, o Maracanã no Rio de Janeiro.

De todo modo é uma ironia da história que os negros, trazidos da África à força, tenham aportado ao país, que os escravizou e continua tratando-os com racismo, esse dom da alegria, que apaixona visitantes, imigrantes e inclusive pesquisadores internacionais de história e sociologia.São numerosos os “brasilianistas” norte-americanos, que adotaram o Brasil como objeto de seus estudos, e o sociólogo italiano Domenico de Masi, autor de O Ócio Recreativo, aponta o país como modelo para o futuro.

O Brasil foi o último país a abolir a escravidão, em 1888, e nunca aprovou nenhum tipo de reparação pelos mais de três séculos de exploração, opressão, maus-tratos e matanças praticadas contra os afrodescendentes.A população negra diminuiu no país nas décadas seguintes. Sem medidas para lhes garantir a sobrevivência em liberdade, os antigos escravizados afundaram na miséria e na consequente alta mortalidade. Envolverde/IPS