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Na Síria há pouca escapatória para as famílias com filhos pequenos

O que restava de uma rua de Alepo, em agosto. Foto: Shelly Kittleson/IPS
O que restava de uma rua de Alepo, em agosto. Foto: Shelly Kittleson/IPS

 

Gaziantep, Turquia, 8/9/2014 – A mulher que entrou no escritório de imprensa da insurgente Frente Islâmica, perto da fronteira com a Turquia, esteve a ponto de desmaiar sob o forte sol da Síria, mas só lhe importava salvar seu bebê. Mais da metade dos aproximadamente 23 milhões de sírios abandonaram suas casas. A mulher era mais uma entre os três milhões de refugiados sírios registrados pela Organização das Nações Unidas (ONU) que se esforçam por manter seus filhos sãos e salvos diante dos inúmeros perigos ligados às zonas de guerra, aos campos de refugiados e ao fato de carecer de cidadania.

Quando a IPS conheceu a jovem, no começo de agosto, ela vivia no acampamento próximo de Bab Al Salama, no norte da Síria, depois de ter fugido de uma região de intensos combates. O bebê tinha poucas semanas de vida e precisava amamentá-lo, mas não havia lugar para fazer fora das vistas dos homens, e assim, vestida com um niqab sufocante, pediu para usar a sala que a organização insurgente utiliza para “inscrever” os jornalistas estrangeiros que cruzam a fronteira.

A sala lhe proporcionou um pouco de sombra e privacidade e, tão logo o ex-combatente de 22 anos encarregado do escritório deixou o local, a jovem começou a alimentar seu filho. Enquanto soprava delicadamente a fronte suada do bebê, a mulher contou à IPS que tem problemas renais e não pode se sentar, só ficar deitada ou em pé. Também tem dificuldade de acesso à atenção médica para ela e o filho com febre. E, apesar da abaya negra (vestimenta que cobre todo o corpo) e do niqab sobre o rosto, que a fazem sentir muito calor, disse que “é melhor usá-los porque estamos em guerra”.

A área ao redor do acampamento de Bab Al Salama, do outro lado da fronteira da cidade turca de Kilis, sofreu vários bombardeios, incluindo um carro-bomba em maio, que matou dezenas de pessoas. Na Turquia, os acampamentos instalados pelo governo nacional para os mais de 800 mil refugiados sírios registrados pela ONU teriam capacidade máxima para 300 mil.

As mulheres correm um risco notório de sofrer crimes sexuais nos acampamentos formais e informais que existem para os refugiados em todo o mundo. Junto às dificuldades econômicas, muitos pais dos dois lados da fronteira citam este motivo para casar suas filhas o mais rápido possível, como tentativa de “proteger sua honra’ e encontrar alguém que as mantenha. As crianças que nascem destas uniões quase sempre ficam sem reconhecimento legal e, portanto, são apátridas que passam a integrar a quantidade de curdos sírios e outros habitantes aos quais o governo de Bashar Al Assad nega a cidadania.

Rua de Alepo, em poder da insurgência em agosto. Foto: Shelly Kittleson/IPS
Rua de Alepo, em poder da insurgência em agosto. Foto: Shelly Kittleson/IPS

 

Mohamed era oficial do exército sírio. Natural de uma grande tribo em Idlib, a 60 quilômetros de Alepo, cidade que foi a capital industrial síria no noroeste do país, o regime atacou sua família quando começou a guerra civil em 2011 e ele lutou com diferentes brigadas do Exército Livre da Síria nos últimos anos. Pouco depois da suposta violação de várias mulheres em sua região pelas mãos de shabiha, forças paramilitares leais a Assad, levou sua jovem esposa, a mãe e as irmãs para a Turquia. Agora cruza ilegalmente a fronteira para vê-las quando não está em combate.

Mohamed quer ir para a Europa. Quando a IPS o viu pela primeira vez, no outono de 2013, ele não tinha intenção de abandonar a Síria. Mas agora tem um filho, que é considerado apátrida. O governo sírio não emitiu passaportes aos oficiais para impedir que desertassem, mesmo antes do levante de 2011, e ninguém em sua família possui um.

Mohamed é um soldado profissional sem salário e os grupos insurgentes moderados não podem lhe oferecer uma remuneração suficiente para manter sua família. Como não tem interesse em aderir aos grupos extremistas, muitos dos quais lhe pagariam melhor, não sabe mais o que fazer para cuidar de seus entes queridos. “Aqui não há futuro”, afirmou.

Do lado turco da fronteira, Ahmad, originário de Alepo, disse que não quer abandonar a região. “Uma vez perguntei à minha mulher para qual país do mundo iria se pudesse escolher, e ela respondeu ‘Síria’”, contou, com orgulho, à IPS. Entretanto, na medida em que se aproximava o nascimento de seu filho e a situação em Alepo se agravava, abandonou paulatinamente suas atividades como ativista nos meios sociais e como fixer, ou jornalista que correspondentes estrangeiros contratam como guia para conseguir contatos locais.

Várias crianças se aproximaram, para pedir dinheiro, da mesa em que Ahmad tomava chá com a IPS em uma cidade na fronteira com a Turquia. “Deveria trabalhar mesmo se isso significar vender lenços de papel pelas ruas”, disse para uma menina, acrescentando que “tem de aprender a trabalhar e não só a pedir. Os turcos começam a se irritar com nossa presença”.

Mais de 200 mil sírios vivem fora dos acampamentos em Gaziantep e os preços dos aluguéis triplicaram desde que os refugiados começaram a chegar. Em meados de agosto, ocorreram protestos contra os estrangeiros, que sofrem cada vez mais atos de violência. Enquanto isso, são feitas gestões para arrecadar fundos para a construção de escolas na Síria que seriam verdadeiras fortalezas, já que o regime de Assad continua atacando escolas e instalações médicas.

Na rebelde Alepo, a IPS ficou com uma família síria durante vários dias em agosto, enquanto continuava a ofensiva aérea do governo com bombas de barril e aumentava o perigo de um iminente cerco das forças de Assad ou da conquista da cidade pelo extremista Estado Islâmico.

Um franco-atirador feriu recentemente, no braço, a mais velha das quatro filhas dessa família, de apenas oito anos, enquanto atravessava a rua para ir à escola, uma das poucas que ainda funcionam. Embora o ferimento esteja sarando, a menina ficará com uma feia cicatriz.

Quando as bombas caíam à noite, os ocupantes da moradia se moviam inquietos, enquanto a menina de oito anos jazia acordada, olhando a escuridão, completamente imóvel. Entretanto, o pai assegurava que a família não partiria. Acontecesse o que fosse. Envolverde/IPS