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A outra retaguarda das Farc

O monte Autana, parque nacional e “árvore da vida” para os uwottyjas, visto do rio. Foto: Humberto Márquez/IPS
O monte Autana, parque nacional e “árvore da vida” para os uwottyjas, visto do rio. Foto: Humberto Márquez/IPS

 

Puerto Ayacucho, Venezuela, 26/11/2013 – A bordo de lanchas rápidas, improvisando acampamentos ou se relacionando com as comunidades indígenas, é ostensiva a presença das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) na Amazônia venezuelana. “Nós os vemos de tempos em tempos passando por aqui em alguma lancha, vestidos de verde, armados, levando provisões”, contou à IPS um veterano barqueiro, Antonio, diante das cinzentas águas do rio Cuao, que vão dar na margem direita do Orenoco Médio, no limítrofe Estado do Amazonas, no sul.

Cerca de cem quilômetros ao sul, em Maroa, povoado de dois mil habitantes junto ao fronteiriço rio Guainía, “quando chega a comida da Mercal (distribuidora governamental de alimentos subsidiados), uma parte vai com os rapazes das Farc”, contam colaboradores do bispo José Ángel Divassón, vigário apostólico do Amazonas. Também em Atabapo, outro povoado fronteiriço, “as Farc impõem ordem e evitam os roubos”, enquanto em comunidades indígenas “buscam estabelecer acampamentos e recrutar jovens aos quais propõem ficar com eles por três anos”, afirmaram os colaboradores.

Selvático, com abundantes e caudalosos rios e rico em minerais, o Amazonas é o sul do mapa venezuelano, com 184 mil quilômetros quadrados e 180 mil habitantes, dos quais 54% foram recenseados em 2011 como pertencentes a 20 etnias indígenas. A presença de grupos armados da Colômbia é o mais novo dos castigos para esta região já maltratada pelo isolamento, pela carência de serviços públicos e pelo desinteresse eleitoral (por sua escassa população) e econômico por parte do poder central.

A vulneração de seu meio ambiente e dos modos de vida e sobrevivência de seus povos indígenas tem longa data. A mineração de ouro informal é a mais visível. Liborio Guarulla, indígena e veterano esquerdista de oposição ao governo central, estima que pode haver até quatro mil guerrilheiros nesse vasto Estado do qual é governador. Em Puerto Ayacucho, a capital, Guarulla disse que “a cinco quilômetros daqui fizeram reuniões com comerciantes para implantar um imposto de guerra”.

O governador, do Movimento Progressista da Venezuela, acredita que a chegada das Farc ao Amazonas “é consequência da ofensiva desatada pelo exército de seu país há cerca de sete anos contra as colunas que tinham como retaguarda o leste colombiano e que agora ultrapassaram a fronteira”. As esquerdistas Farc são a insurgência mais antiga e persistente da América Latina. Pegaram em armas em 1964 e há meses estão envolvidas em negociações de paz com o governo colombiano, que acontecem em Havana, capital cubana.

Em maio, combatentes das Farc, por ordens de “Antonio Medina”, fizeram contato com líderes do povo uwottyja (piaroa), que habita o Orenoco Médio e seus afluentes, para estabelecer uma relação de cooperação, contou à IPS o xamã da comunidade de Caño de Uña, José Carmona. “Dissemos a eles que não, que tanto a presença deles quanto a dos mineiros ofende nossas tradições porque somos povos que queremos viver sem armamentos, apenas com facões para o ‘conuco’ (lote cultivado) e escopetas para caçar”, detalhou Carmona.

Depois dessas reuniões, as organizações uwottyjas das áreas de cinco rios da região publicaram uma carta dirigida às Farc, na qual manifestaram “total desacordo com sua presença e deslocamento em nosso território”. Com respeito à “condição humana” dos guerrilheiros, os uwottyjas rejeitaram “o intercâmbio comercial ou contratação de indígenas” pelas Farc e pediram que “busquem com urgência uma alternativa para poderem retornar ao seu lugar de procedência ou país”.

O deputado César Sanguinetti, do governante Partido Socialista Unido da Venezuela, declarou à IPS que “a conduta responsável do Estado faz com que nossa soberania seja impermeável”. Da etnia curripaco, presente no sul do Amazonas e sudeste da Colômbia, Sanguinetti diz que “apesar de considerar de que as Farc surgem de um processo nas entranhas do povo colombiano, somos um país soberano que não deve permitir a entrada de nenhum tipo de força armada, e como povo e governo pedimos respeito”.

Outros indígenas, o professor uwottyja Juan Pablo Arana e o técnico em saúde yanomami Luis Shatiwe, estimam que a guerrilha agrava os problemas de abastecimento das comunidades indígenas, que devem competir com os contrabandistas pelo acesso a alimentos, combustível e outros bens. “Para conseguir farinha, açúcar, óleo, arroz ou café viajamos horas, às vezes até Puerto Ayacucho, mas é caro devido ao preço da gasolina e do diesel, e às vezes chegamos e já não restam esses produtos nos Mercal”, disse Arana, na comunidade Raudal de Seguera, ao pé do morro Autana, sagrado para seu povo.

A gasolina na Venezuela é a mais barata do mundo (US$ 0,015 o litro), mas aqui os preços sofrem outras distorções. Um tambor de 200 litros, cujo preço em Puerot Ayacucho é de 20 bolívares (o mesmo de uma lata de refrigerante), “custa milhares de bolívares no Alto Orenoco, até oito mil ou dez mil. As canoas de indígenas são muito revistadas pelos militares, mas se vê que deixam passar as de mineiros ou contrabandistas”, disse Shatiwe. Centenas de mineiros informais extraem ouro do Amazonas, embora a mineração esteja proibida neste Estado.

“Para o povo de Maroa, que tem uma única usina elétrica, chega um carregamento de cem mil litros de diesel e em três dias acaba. Para quem foi vendido?”, questionou Guarulla. Para Divassón, “os três grandes problemas que identificamos são mineração ilegal, que destrói o habitat das comunidades, a presença de colombianos irregulares, e temas sensíveis como falta de energia elétrica, falhas em outros serviços, escassez ou carestia de bens e insegurança”.

O que na verdade chega ao Amazonas, e em cores, é a polarização política do resto do país. Os telhados de metal para moradias dos indígenas são vermelhos, quando doados pelo governo central de Nicolás Maduro, ou são azuis, quando entregues pelo governador Guarulla. Envolverde/IPS