Arquivo

Onde houve guerra, o álcool fica

Um homem sentado em sua cozinha improvisada na aldeia de Dharmapuram, no Sri-Lanka, após regressar para casa alcoolizado. Foto: Amantha Perera/IPS
Um homem sentado em sua cozinha improvisada na aldeia de Dharmapuram, no Sri-Lanka, após regressar para casa alcoolizado. Foto: Amantha Perera/IPS

 

Dharmapuram, Sri-Lanka, 6/8/2014 – Quando os Tigres para a Libertação da Pátria Tamil (LTTE) instituíram um Estado de fato, na província Norte do Sri-Lanka, o consumo de álcool esteve sob forte controle e era muito mal visto. Mas tudo mudou com o fim da guerra civil em 2009.

Depois que as forças governamentais derrotaram o insurgente LTTE após quase três décadas de guerra civil, as rígidas normas aplicadas à venda de bebidas alcoólicas perderam força. Atormentada pela pobreza, pelo trauma e por falta de oportunidades de trabalho, muitas pessoas nas regiões onde se desenvolveu o conflito se voltaram à bebida para afogar as mágoas.

“Há um elevado consumo de álcool casual e habitual na região, que é preocupante. Se tornou normal beber algo forte no final do dia”, contou à IPS Vedanayagam Thabendran, oficial de serviços sociais do distrito de Kilinochchi, na província Norte, cuja capital de mesmo nome fica a 240 quilômetros da capital, Colombo.

Uma pesquisa, realizada em dezembro de 2013 pelo não governamental Centro de Informação sobre Drogas e Álcool, aponta que o distrito de Mullaitivu fica em segundo lugar com maior consumo, com 34,4% dos entrevistados dizendo ser “consumidores habituais de álcool”. O estudo foi feito em dez dos 25 distritos do país, entre os quais dois da província Norte.

“A frequência do consumo foi maior em Mullaitivu, entre os dez distritos pesquisados. Tanto em Jaffna como em Mullaitivu, a ingestão de cerveja foi maior do que a de arak (licor forte)”, detalhou Muttukrishna Sarvananthan, que dirige o Instituto de Desenvolvimento Point Pedro. Além disso, acrescentou à IPS, a “evidência empírica e os números da venda de álcool” indicam um vínculo entre o final da guerra civil e o aumento do consumo.

Thabendran disse que o alcoolismo era mais acentuado nos povoados que estiveram sob controle do LTTE. Um deles, citou como exemplo, é Dharmapuram, 17 quilômetros a nordeste de Kilinochchi. “Continuamos recebendo denúncias de disputas domésticas como consequência do álcool e sabemos que há muitos lugares ali onde há bebidas ilegais”, afirmou. Os trabalhadores humanitários da região disseram que Dharmapuram recebeu o apelido de “centro de bebedeiras” pela disponibilidade de bebidas ilegais.

“Uma das tendências perturbadoras é a prevalência de famílias encabeçadas por mulheres onde se vende bebida como forma fácil de ganhar dinheiro”, contou um trabalhador humanitário, que não se identificou por trabalhar com famílias envolvidas.  As cervejas caseiras, de coco ou cana-de-açúcar, são baratas e fáceis de conseguir. As mulheres do norte que as fabricam dizem ganhar cem rúpias (equivalentes a US$ 0,07) por litro de “mooshine” (uma bebida destilada). Os consumidores dizem que o álcool ilegal vale pelo menos um quinto da bebida legal de menor graduação.

“Nunca vi tanto álcool aqui desde há 50 anos”, afirmou Arumygam Sadagopan, de 60 anos, morador em Dharmapuram. Este funcionário público aposentado contou à IPS que o consumo de bebida habitual de álcool, especialmente entre homens jovens, exacerbava a pobreza e a violência doméstica. Além disso, contou que a família vizinha estava em uma situação crítica por causa das bebedeiras diárias do marido. “Têm dois filhos em idade escolar, que veem o pai a maior parte do tempo bêbado, cheirando a álcool e discutindo ou brigando com a mãe”, detalhou.

Com o final da guerra foram eliminadas tanto as restrições sobre o fácil acesso a bebidas alcoólicas como as barreiras sociais que mantinham o consumo sob controle. “Há uma mudança visível nos padrões de consumo nas zonas afetadas pela guerra com relação à época do LTTE”, pontuou G D Dayaratna, diretor da unidade de política econômica e saúde do Instituto de Estudos Políticos do Sri-Lanka. O LTTE mantinha forte vigilância sobre a produção nas áreas sob seu controle, acrescentou .

Porém, a situação não é específica das áreas onde o conflito se desenrolou. Em todo este país insular a produção e o consumo registraram um forte aumento desde o final da guerra. O Departamento de Impostos arrecadou 66 milhões de rúpias (US$ 500 mil) em 2013 com a venda de álcool, alta de 10% em relação ao ano anterior.

Mulheres, meninos e meninas prejudicados pelo aumento do consumo de álcool na província Norte do Sri-Lanka. Foto: Amantha Perera/IPS
Mulheres, meninos e meninas prejudicados pelo aumento do consumo de álcool na província Norte do Sri-Lanka. Foto: Amantha Perera/IPS

Em 2009, o Sri-Lanka produziu 41 milhões de litros de bebidas alcoólicas de alta graduação e 55 milhões de cerveja, mas no ano passado a produção do primeiro aumentou para 44 milhões, enquanto a do segundo disparou para 120 milhões. Segundo informe da Organização Mundial da Saúde, o consumo total de álcool por habitante em maiores de 15 anos foi de 20,1 litros, entre 2008 e 2010.

Não há dados disponíveis sobre a quantidade de álcool caseiro ilegal, mas um estudo de 2002 concluiu que 77% do consumo no Sri-Lanka eram elaborados dessa forma. Em 2013, as multas neste caso chegaram a 127 milhões de rúpias (US$ 975 mil). Nos dois distritos do norte de onde se tem cifras oficiais, o desemprego é mais do que o dobro da média nacional de 4%, 9,3% em Kilinochchi e 8,1% em Mannar.

Saravananthan estima que o desemprego poderia afetar mais de 20% da população economicamente ativa em Dharmapuram, enquanto cerca de 30% se situam no setor informal da agricultura, silvicultura, pesca e no trabalho de diarista. A pobreza também é acentuada nesta província. Quatro dos cinco distritos registraram níveis superiores à média nacional de 6,7%.

Nos três distritos onde a guerra foi mais intensa (Kilinochchi, Mannar e Mullaittivu) a pobreza afeta 12,7%, 20,1% e 28,8%, respectivamente, segundo os dados oficiais mais recentes divulgados em abril. Envolverde/IPS