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Descontentamento no Quênia sem força para parir uma primavera

Nos primeiros cem dias do governo de Kenyatta houve vários protestos de rua e ameaças de greves no setor público. Foto: Miriam Gathigah/IPS
Nos primeiros cem dias do governo de Kenyatta houve vários protestos de rua e ameaças de greves no setor público. Foto: Miriam Gathigah/IPS

 

Nairóbi, Quênia, 26/7/2013 – A polícia do Quênia investiga o surgimento de um grupo denominado Movimento 4 de Março (M4M), que recruta jovens para organizar protestos semelhantes aos realizados no Egito nos últimos anos. Porém, dirigentes políticos e analistas não acreditam que esse movimento tenha envergadura suficiente para desatar uma “Primavera da África oriental”. “As manifestações são um bom indicador do grau de insatisfação entre os cidadãos, mas não há país na África oriental com consciência política para sustentar o tipo de protesto que vimos no mundo árabe”, disse à IPS o parlamentar Gideon Ochanda, do distrito de Bondo, na província de Nyanza.

Esta semana o ativista Okiya Omtatah, que reivindica a criação do movimento, foi intimado pela polícia para depor. Anteriormente acreditava-se que o fundador do M4M era Eliud Owalo, conselheiro do ex-primeiro-ministro Raila Odinga (2008-2013). Segundo a imprensa local, o M4M procura explorar o descontentamento entre os quenianos, muitos dos quais estão insatisfeitos pelo aumento nos preços dos alimentos, e querem derrubar o presidente Uhuru Kenyatta. Acredita-se que o grupo estaria planejando protestos nacionais semelhantes aos ocorridos este mês no Egito, que derivaram em um golpe militar contra Mohammad Morsi, o primeiro presidente eleito democraticamente no país. Em 2011, mobilizações em massa derrubaram o regime do presidente egípcio Hosni Mubarak, que governava desde 1981.

Nos primeiros cem dias do governo de Kenyatta, de 9 de abril a 19 deste mês, houve uma série de protestos nas ruas e ameaças de greves no setor público, mas nunca atingiram a magnitude das egípcias. Entre 25 de junho e o dia 17 deste mês, 280 mil professores quenianos participaram de uma greve, mas esta terminou quando o governo ameaçou congelar seus salários. O Sindicato Nacional de Enfermeiras e Enfermeiros do Quênia anunciou, no dia 5, uma greve de 21 dias, mas ainda não fixou a data para iniciá-la.

Ativistas de todo o país começaram, em junho, a fazer campanha contra o novo projeto de Lei de Imposto de Valor Agregado, conhecido popularmente como “projeto do imposto unga”. A iniciativa objetiva gravar em 16% o valor de produtos básicos até agora livres de impostos, como arroz, pão, farinha de milho, leite processado e papel higiênico. Esta instabilidade permite traçar paralelos com a que experimentavam alguns países onde se registrou a Primavera Árabe, especialmente o Egito.

No entanto, Cyprian Nyamwamu, diretor-executivo da East African Democracy Foundation, disse que “as massas pobres não podem sustentar ações em massa”, acrescentando que, “quando uma grande quantidade de pessoas vive com o mínimo, não podem se dar ao luxo de permanecer nas ruas muito tempo”. O analista explicou que a Primavera Árabe foi impulsionada pela classe média, cujas lutas eram fundamentalmente políticas, enquanto as reclamações dos quenianos são, na sua grande maioria, econômicas.

A revista The African Economist indica que o Egito é a quarta maior economia africana, com produto interno bruto de US$ 111,8 bilhões, enquanto o Quênia é a décima primeira, com US$ 24,8 bilhões. Nyamwamu explicou que a classe média no mundo árabe possui moradia e goza de relativa segurança financeira, enquanto “uma grande parte da classe média no Quênia paga aluguel”. É por isto que, por exemplo, os professores quenianos não podem manter por muito tempo um protesto se não receberem seus salários, pois não teriam como cumprir com suas obrigações mensais, como o pagamento do aluguel.

Para expressar seu descontentamento com a crescente alta no preço dos alimentos, Felix Omondi sempre participa dos protestos com ugali, prato típico à base de milho. “Um pacote de farinha de milho de dois quilos deve baixar dos US$ 2 atuais para menos de um dólar”, reclamou Omondi, membro do grupo juvenil de pressão Revolução Unga, em entrevista à IPS. Peter Kimani, membro do mesmo grupo, disse à IPS que “vamos realizar manifestações, e inclusive expulsar este governo se continuar surdo às reclamações do povo”.

Por sua vez, Jennifer Massis, do partido Ford Kenya, na região do Vale do Rift, alertou que o projeto de lei sobre valor agregado poderá desatar mais mobilizações. “Estamos entre os cidadãos com maiores impostos na África, e nossos parlamentares estão entre os mais bem pagos. As pessoas estão descontentes”, disse à IPS. Porém, Nyamwamu afirmou que “os protestos de rua não são uma solução. O sistema judicial foi reformado. Os quenianos devem aprender a levar suas lutas aos tribunais”.

Por sua vez, Ochanda disse que os manifestantes do Quênia carecem de um ponto de concentração, como a emblemática Praça Tahrir, no Cairo. “Nos fatos, são os pobres que se manifestam, e tendem a ser reacionários em seus protestos. A classe média, com consciência política e capaz de desatar uma série de movimentos que reorganizem o poder e responsabilizem seus líderes, atua como se não precisasse do governo”, enfatizou. Envolverde/IPS