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Como romper o silêncio sobre violações

A mobilização e a maior conscientização pública podem ajudar a proteger meninos e meninas da violência sexual. Foto: Amantha Perera/IPS

Colombo, Sri Lanka, 2/8/2012 – O silêncio fantasmagórico foi o que causou maior impacto em Kumar de Silva, conhecido jornalista do Sri Lanka, quando percorreu o bairro de Kirulapone, na capital, no dia seguinte ao encontro do corpo de uma menina de seis anos boiando sem vida em um sujo canal. A investigação e a autópsia revelaram que a menina fora violada por um familiar de 16 anos e dois amigos seus, que depois a jogaram no canal, onde se afogou. “Era um povoado fantasma, como se nada tivesse acontecido”, contou Kumar à IPS. “Não suportei o silêncio”, ressaltou.

Mas, este não foi um caso isolado. Em junho, seis homens, entre eles um dirigente político local, violentaram uma menina de 13 anos na localidade de Tangalle, e outra de 14 anos foi violada várias vezes durante dias seguidos em Akuressa, ambas as cidades no sul. Kumar, visivelmente afetado pelos acontecimentos e pelo silêncio que se seguiu, expressou seu mal-estar nas mídias sociais e escreveu em seu mural no Facebook “não à violação, não ao abuso infantil”. Recebeu centenas de comentários e criou uma página no Facebook específica, que atraiu centenas de seguidores. Kumar também tentou mobilizar os meios de comunicação e seus colegas. “Faço isto como pai e cidadão preocupado. Quero inspirar e provocar as pessoas para que gritem”, afirmou.

A diretora do Banco Mundial para o Sri Lanka, a senegalesa Diarietou Gaye, também não suportou o silêncio. Após várias conversas com sua equipe, Gaye agiu de forma pouco habitual para uma representante de uma agência internacional. Expressou sua opinião pessoal em seu blog. “É hora de as pessoas falarem do assunto no trabalho, no bairro, na escola, em instituições religiosas ou qualquer fórum público ou privado, e denunciar um ato de violência degradante”, declarou à IPS. Na maioria dos casos, as meninas são agredidas por pessoas conhecidas, por adultos que deviam protegê-las, como familiares, empregados e professores, acrescentou.

Três dias depois de seu primeiro comentário no blog, a polícia deteve um homem de 80 anos que trabalhava em um orfanato da cidade de Mawanella, centro do país, por violar 15 menores de 15 anos. Apesar das denúncias do aumento de violações, especialmente de menores, muitos observadores sentem que a população reage, no melhor dos casos, de forma pouco envolvida, e, no pior, como cúmplice.

Porta-voz da polícia, Ajith Rohana, disse que houve 700 casos no primeiro semestre deste ano. “Creio que o Sri Lanka ficou condicionado a ser imune diante da violência após 30 anos de guerra civil”, disse à IPS a advogada e escritora Dilrukshi Handunnetti. “Nosso silêncio coletivo não se limita apenas à violação. Enquanto sociedade, preferimos ser completamente ignorantes e resistentes, sem se importar com o assunto. A cultura do ‘poder do povo’ ou a mobilização de massas, claramente, não chegou às nossas praias”, afirmou à IPS a estudante de pós-graduação Marisa de Silva.

Handunnetti explicou à IPS que a maioria dos cingaleses parece programada para “fechar-se” quando enfrentam temas de sexualidade. “Mesmo em discussões sobre direitos humanos são evitadas as questões relacionadas com a sexualidade, ninguém quer falar”, destacou Handunnetti, que trabalhou com a organização não governamental Transparência Internacional. A ignorância e a rejeição em lidar com a verdade podem ser devastadoras. No norte do Sri Lanka, aberto para o resto do país após o fim da guerra civil em maio de 2009, aumenta a quantidade de adolescentes grávidas, declarou à IPS a diretora da organização Mulheres e Desenvolvimento, Sarajova Sivachandran.

A organização, com sede em Jaffna, registrou 400 adolescentes grávidas e só este ano recebeu 300 denúncias de violações no norte. A falta de conhecimento é uma das principais causas do abuso, esclareceu Sivachandran. “As meninas, e inclusive os meninos, são inocentes, não sabem o que acontece por aí. Com o fim da guerra, o mundo exterior se chocou contra suas vidas. Temos que lhes dizer o que é certo e o que não é certo”, enfatizou. Kumar de Silva reconheceu que um blog, ou uma página no Facebook, tem um impacto reduzido no Sri Lanka. “Temos que chegar às regiões no lugar em que ocorrem estes episódios, de alguma maneira devemos conseguir que nossa gente fale e denuncie isso”, insistiu.

Há alguns protestos esporádicos em Colombo, a capital e nos arredores, e um grupo de ativistas prevê enviar uma carta ao presidente do país, Mahinda Rajapaksa, para propor o tema e pedir uma reunião. No entanto, como disse Sivachandran, devido à magnitude do problema, a reação popular é “lamentável”. Entretanto, o veredito popular, pelo menos no ciberespaço, foi claro: 60% dos que responderam uma pesquisa feita pelo Lankadeepa, um jornal cingalês, e pelo grupo Deerama, disseram que quem violenta menino ou menina deve ser condenado à morte, embora seja um castigo que não existe na legislação nacional.

A mudança vai demorar e será penosamente lenta, observou Kumar. “E, quanto mais falarmos, mais gente se conscientizará e os responsáveis serão denunciados”, opinou. Gaye, do Banco Mundial, disse que, com uma forte liderança no centro de qualquer movimento, a mobilização decolará, mas somente terá êxito se uma maioria de cidadãos a registrarem. “Para conseguir uma mudança é preciso uma forte vontade política e liderança, evidente em algumas partes do Sri Lanka”, explicou, apressando-se em acrescentar que, “se o Sri Lanka fala sério em converter-se no milagre da Ásia, precisa proteger seu povo, e é responsabilidade de todos e de cada um dos cingaleses assegurar que assim seja”. Envolverde/IPS