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Bereberes líbios fecham a torneira do petróleo

Um rebelde berebere controla o porto de Mellitah, no noroeste da Líbia. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Um rebelde berebere controla o porto de Mellitah, no noroeste da Líbia. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Zuara, Líbia, 7/11/2013 – “Nenhum petroleiro atracará neste porto enquanto Trípoli não atender nossas demandas”. São as palavras de Younis, um dos rebeldes que bloqueiam uma das maiores refinarias de gás e petróleo da Líbia. Dirigida pela empresa italiana ENI e pelo governo líbio, a unidade de gás e petróleo de Mellitah, cem quilômetros a oeste de Trípoli, está bloqueada desde 26 de outubro, quando um grupo de homens armados tomou seu porto de atracação.

“Partimos da cidade vizinha, Zuara, de noite, por mar”, contou Younis à IPS. “Estamos aqui desde então, nos organizamos em turnos de 30 homens”, explicou na tenda que serve de centro de comando desse estratégico lugar. “Em 2011, nós, amazighs da Líbia nos levantamos em massa contra um regime que nos tratara como cães durante décadas. Dois anos depois, continuamos sem ter reconhecimento do novo governo líbio”, ressaltou Younis antes de ajudar a descarregar um barco com suprimentos.

Também chamados bereberes, os amazighs são habitantes nativos do norte da África. Sua população se estende desde a costa atlântica do Marrocos até a margem oeste do Nilo, no Egito, e compartilham uma língua comum com as tribos tuaregues do interior do Deserto do Saara. A chegada dos árabes à região no século 7 foi o início de um lento mas progressivo processo de “arabização”, que foi bruscamente acelerado durante as quatro décadas nas quais Muammar Gadafi (1969-2011) permaneceu no poder na Líbia.

Calcula-se que a quantidade de amazighs gire em torno dos 600 mil nesse país, cerca de 10% da população. “O governo não nos reconhece e nós tampouco reconhecemos o governo”, se lê em um dos múltiplos cartazes colocados na instalação. Muitos são trilíngues: árabe, inglês e tamazight, uma língua que tem seu próprio alfabeto.

“O objetivo principal de nosso protesto é modificar o funcionamento do comitê encarregado de redigir a Constituição, pois não temos nenhuma oportunidade de conseguir nossos direitos como povo por intermédio do mesmo”, afirmou o rebelde Ayub Sufian. O jovem se refere ao chamado Comitê dos 60, pela quantidade de integrantes, que contempla seis membros das minorias. “Dois para os amazighs, dois para os tuaregues e outros dois para os tubus (grupo do sul do país)”, detalhou.

Segundo Sufian, o problema “é que se trata de um sistema baseado na maioria de dois terços mais um, isto é 41. Que opção nos resta já que não somos considerados árabes?”, perguntou. “Queremos que o tamazight seja língua oficial, bem como poder participar de decisões importantes em relação ao país”, acrescentou. A alternativa seria “um acordo baseado no consenso, e não na maioria”, pontuou.

Embora Sufian use uniforme camuflado e tenha uma pistola na cintura, é um dos integrantes do Conselho Supremo Amazigh, que engloba todas as localidades bereberes da Líbia. A maioria está na Cordilheira de Nafusa, no noroeste, enquanto Zuara constitui um inesperado mas compacto enclave costeiro desta minoria, em uma região plana e desértica na fronteira com a Tunísia.

A falta de um governo central efetivo levou a uma atomização do poder nos âmbitos regional e tribal, sobre os quais Trípoli exerce pouca influência. Os rebeldes do regime de Gadafi se reconverteram em milícias que dirigem postos de controle em suas zonas de origem e cuja lealdade recai nos conselhos locais. Os amazighs que bloqueiam a refinaria não são uma exceção.

“Nossas armas e nossos uniformes, bem como o resto dos suprimentos, chegam do conselho local de Zuara. Toda a cidade está conosco”, garantiu um orgulhoso Sufian. Os motivos desse apoio são revelados por Fathi Buzajar, reconhecido ativista amazigh que trabalha no Centro Líbio de Estudos Estratégicos e do Futuro. “Protestamos pacificamente, nos reunimos infinitas vezes com representantes das Nações Unidas, mas não serviu para nada. A ocupação de Mellitah é um passo adiante”, disse Buzajar à IPS de sua residência em Trípoli.

“Nossa região nas montanhas de Nafusa foi determinante para tomar Trípoli (durante a rebelião contra Gadafi). Fomos usados para isso e agora nos marginalizam sob o pretexto de que seguimos uma agenda estrangeira”, denunciou Buzajar, que recentemente visitou o oleoduto de Jwidia, 250 quilômetros a sudoeste de Trípoli, também bloqueado pelos amazighs desde 29 de setembro.

Em sua última sessão, no dia 5, o parlamento líbio decidiu não abordar o tema, mas o certo é que bloquear o gás e o petróleo em Trípoli parece ter se transformado em uma prática habitual para pressionar o governo, desde Bengasi, no extremo nordeste, até Ubari, no sudoeste, onde os tuaregues realizam um protesto semelhante. No momento, as tripulações dos rebocadores que facilitam a atracação e carga dos navios em Mellitah matam o tempo pescando no porto. No entanto, protestos semelhantes por todo o país reduziram a exportação total de petróleo em 90%.

Trabalhadores da unidade de Mellitah garantiram à IPS que, embora permaneça interrompido o fornecimento de 160 mil barris diários de petróleo, a refinaria não sofreu nenhum problema em suas máquinas nem houve ameaça por parte dos ocupantes. Porém, os rebeldes afirmam que estão dispostos a dar novos passos em seu protesto.

“Até agora só cortamos o fornecimento de petróleo, mas, se não forem atendidas nossas demandas, estamos dispostos a fazer o mesmo com o gás”, declarou à IPS um rebelde de nome Anwar. Se isso ocorrer, as possíveis vítimas colaterais do contencioso entre Trípoli e os amazighs poderiam ser os italianos, que veriam reduzidas suas existências de gás bem perto da chegada do inverno. Envolverde/IPS