“Células-tronco podem elevar muito a expectativa de vida”

Poucas horas após receber um importante prêmio da Sociedade Americana de Hematologia, no início de dezembro, em San Diego, Estados Unidos, George Q. Daley aceita receber a reportagem de CartaCapital no Centro de Convenções local.

Com um jeito tímido, um dos mais respeitados especialistas em células-tronco do mundo, inicia a conversa com o repórter: “Eu trabalhei com uma médica brasileira muito competente. Os brasileiros têm ótimos pesquisadores”, diz.

Internacionalmente reconhecido por estudos sobre leucemia mielóide crônica e descobertas que mudaram o paradigma dos tratamentos com células-tronco, Daley dirige o programa de transplantes de células-tronco do Hospital Infantil de Boston e leciona na prestigiada Faculdade de Medicina de Harvard.

O médico e pesquisador destacou que apesar da grande expectativa do mundo científico, os tratamentos com células-tronco apresentam resultados concretos apenas contra doenças sanguíneas. “Esses procedimentos possibilitaram a cura de condições antes fatais, como alguns tipos de leucemia e linfomas. Mas isso não significa que sejam seguros.”

Segundo Daley, além das doenças sanguíneas, os tratamentos com essa técnica são altamente experimentais e devem levar décadas para chegar ao mercado.

O especialista destaca, porém, que as terapias gênicas, nas quais mutações são realizadas nas células dos pacientes para curar doenças ou recuperar tecidos, podem ser o futuro da medicina. “Podemos levar todo o próximo século para dominar essas técnicas, que trarão escolhas difíceis em seu uso, pois podem estender consideravelmente a expectativa de vida dos pacientes.”

Na entrevista, Daley ainda comenta a ética envolvida na utilização em testes de células embrionárias, consideradas seres vivos pela Igreja Católica, e aborda uma forma revolucionária de criar células-tronco a partir da pele.

Veja a íntegra abaixo.

CartaCapital – Um tratamento com células-tronco pode ser considerado seguro?

George Q. Daley – As células-tronco vêm sendo usadas em tratamentos de doenças sanguíneas há cerca de 50 anos. Inclusive, evoluiu para o tratamento padrão de condições antes fatais, como alguns tipos de leucemia e linfomas. Há um pequeno número de doenças genéticas no sangue que podem ser tratadas com transplantes de medula, mas por ser tratamento padrão não quer dizer que é seguro. É um procedimento muito tóxico e usado em situações nas quais as doenças subjacentes são terríveis, fatais ou debilitantes. Fora do sangue, há relativamente poucos tratamentos baseados em células-tronco. Temos alguns relativos à pele e desordens na córnea, mas todos ainda recentes. Há diversos testes clínicos ativos, mas é muito importante deixar claro aos potenciais pacientes que estes testes são altamente experimentais. As pessoas não devem aderir a esses tratamentos achando que eles vão funcionar. Há evidências bem fracas, exceto nos casos sanguíneos, de que o tratamento com células-tronco possa funcionar.

CartaCapital – Além do sangue, mesmo com o cenário descrito acima pelo senhor, há algum teste promissor para o tratamento de doenças graves?

GQD – No sangue estamos muito confortáveis, pois entendemos os mecanismos, a biologia, a extensão dos pacientes que podem ou não ser tratados. Sobre qualquer outro tipo de doença, no momento, é pura especulação. Há muita agitação, modelos animais sendo tratados, mas não significa que estamos prontos para levar isso aos pacientes. Se pensarmos em condições, como a doença de Parkinson, há razoáveis modelos animais que refletem similaridades com a doença humana, e têm havido abordagens baseadas em células-tronco para tratar esses animais. Precisamos, porém, de mais avanços técnicos e maior compreensão da segurança para fazer terapias reais. E este é um caminho longo e demorado.

CartaCapital – Entre os testes com mutação genética mais comentado,s está a reprogramação de células somáticas. Como essa técnica funciona?

GQD – A reprogramação de células somáticas ainda é um pouco de jogo de sorte, temos pouca noção de como funciona. Começamos inserindo quatro genes, os fatores de transcrição, em células especializadas da pele, por exemplo. Estes genes são proteínas que se ligam ao DNA e podem ligar ou desligar certos genes na célula. Quando adicionamos esses fatores de reprogramação a uma célula da pele, eles encontram todos os genes normais e os desligam. Depois, localizam todos os genes embrionários e os ligam. Então, a célula inteira essencialmente se reorienta e muta para uma célula-tronco, virtualmente indistinguível de uma célula-tronco embrionária. Demos apenas o primeiro passo no caminho do entendimento, mas para mais avanços ainda será necessário considerável esforço da ciência.

CartaCapital – Essas células já fazem parte de algum teste clínico?

GQD – Ainda não. Os mais recentes testes clínicos aprovados nos Estados Unidos usam células-tronco embrionárias. Há um estudo em lesão da medula espinhal, no qual foram utilizados os produtos de células embrionárias humanas, além de testes com o mesmo tipo de células em pequenos grupos para tratar pacientes com problemas na retina. Esperamos que no futuro haja uma técnica capaz de usar as próprias células do paciente e aproveitar as vantagens da compatibilidade e da ausência de rejeição no organismo.

CartaCapital – Como a reprogramação de células somáticas poderia ser usada para curar doenças?

GQD – Somos uma população em envelhecimento e quando ficamos velhos, nossos tecidos falham. O coração, pele, fígado e cérebro falham e os remédios não tratam isso. O que estamos imaginando na verdade é que, se há doenças especificamente ligadas à perda de um certo tecido, seria possível tratar a doença substituindo o tecido danificado. O exemplo frequentemente mencionado é a doença de Parkinson, que de maneira simplista é a perda de um produtor específico de dopamina responsável pela produção de neorônios. Sabemos, por meio de testes em animais e alguns poucos em humanos, que ao susbtituir células produtoras de dopamina, é possível haver uma melhora na condição do paciente. Um outro caso semelhante é a diabetes, especialmente a juvenil, que é autoimune pela destruição de células do pâncreas. Quando essas crianças vão ao hospital já não possuem mais células do órgão, então não vão se regenerar sozinhas. Sabemos, porém, que podemos transplantar as células produtoras de insulina. Também é possível realizar um transplante de pâncreas, mas isso não suprirá todas as necessidades. Então, uma das grandes expectativas com as células-tronco embrionárias é a capacidade de se transformarem em um suprimento infinito de produção de insulina. Além disso, há uma gama de doenças nas quais esperamos substituir células danificadas como terapia. Funciona em ratos, mas não foi testado em humanos.

CartaCapital – O senhor acredita que esse é o futuro da medicina? Vamos abandonar os medicamentos e usar apenas terapias gênicas?

GQD – Creio que jamais vamos abandonar os medicamentos, mas levamos uma grande parte do Século 20 para realmente entendermos como fazer remédios a partir de químicos. Essa revolução quase dobrou a nossa expectativa de vida, mas conforme enfrentamos novos desafios de debilidade e perdas de tecido, creio que vamos ter terapias celulares. Podemos levar todo o próximo século para atingi-las e também devem surgir diversos tópicos problemáticos. Esses tratamentos podem levar a considerável extensão da vida e podem envolver escolhas difíceis de como vamos empregá-los. Contudo, no enfoque do tratamento de doenças pediátricas, no qual precisamos ajudar crianças a preservar suas funções e terem uma vida longa, creio que seja uma alternativa valiosa.

CartaCapital – Quanto tempo separa a teoria da aplicação na vida real?

GQD – Se olharmos para algumas das mais importantes descobertas em biotecnologia dos últimos 50 anos, veremos, entre outras, a recombinação do DNA e os anticorpos monoclonais. Agora pensamos em células-tronco, mas em cada caso de descobertas passadas houve testes clínicos prévios bem-sucedidos. As tecnologias, no entanto, se espalharam 20 anos depois. A fase clínica pode levar dez anos, mas os benefícios aos pacientes costumam aparecer 20 ou 25 anos mais a frente. Os anticorpos monoclonais, por exemplo, entraram em cena em 1975. Foi, porém, entre 1995 e 2000 que tiveram impacto em massa nos pacientes. Creio que o mesmo deve acontecer com as terapias baseadas em células-tronco. Em 30 anos, veremos o real impacto delas.

CartaCapital – No Brasil, um país majoritariamente católico, a igreja vê as células embrionárias como seres vivos. Como o senhor enxerga esse tipo de conflito?

GQD – Nos Estados Unidos, há muitas contradições sobre o uso de embriões em pesquisas. E células-tronco embrionárias vêm de embriões. A descoberta da reprogramação de células somáticas, que nos permite transformar virtualmente uma célula da pele em uma célula embrionária, calou parte deste debate. Porque agora temos um equivalente a uma célula pluripotente, uma célula que pode virar qualquer tecido. Mas, como cientista, isto não é uma resposta para todas as necessidades de experimentação. Células embrionárias ainda são o padrão de ouro das células pluripotentes. Ainda estamos aprendendo sobre esses novos tipos celulares reprogramáveis, que podem um dia se provar mais versáteis e valiosos. Contudo, ainda vamos precisar de células embrionárias para responder certas perguntas, mas a verdade é que crianças e pacientes vivos são diferentes de células cultivadas em um prato de petri. Cientificamente, o que acontece nos primeiros dias é apenas divisão celular. Não é vida.

* Publicado originalmente no site Carta Capital.