Política Pública

Mitos sobre os árabes e os muçulmanos

Por Baher Kamal, das IPS – 

Roma, Itália, 22/2/2017 – Enquanto a decisão do presidente Donald Trump, de proibir a entrada nos Estados Unidos de cidadãos de sete países de maioria muçulmana, perambula pelos labirintos jurídicos sobre sua legalidade, talvez seja útil esclarecer alguns mitos que frequentemente levam a uma confusão ainda maior sobre quem é árabe e quem é muçulmano.

De todos os temas com os quais se gastou toneladas de tintas e se disse milhões de palavras, mas com frequente escassez de informação de fundo, baseando-se, em geral, em suposições errôneas que levam a conclusões equivocadas, o do Oriente Médio, e em particular o de árabes e muçulmanos, talvez seja um dos mais destacados.

Para começar, é crença comum – muito reiterada pela mídia – que existe um tal “mundo árabe” ou “nação árabe”. Os políticos e meios de informação árabes também falam de “pátria árabe”. Isso, simplesmente não é correto.

Em primeiro lugar, porque muito pouco tem a ver alguém da Mauritânia com um habitante de Omã, um marroquino com um iemenita, um egípcio com um cidadão do Bahrein, e um iraquiano com um somaliano, apenas para mencionar alguns exemplos. Cada um deles apresenta diferentes raízes étnicas, histórias, língua original, tradições e crenças religiosas.

Por exemplo, os amaziguí – também conhecidos como bereberés – são um grupo étnico indígena do norte da África que vive nas terras localizadas entre a costa do oceano Atlântico e o deserto ocidental do Egito. Ali, há entre 25 e 30 milhões de bereberés que falam seu idioma próprio (que não é o árabe), embora se estime que o número total de comunidades bereberés (incluindo aquelas que não falam esse idioma) seja muito maior.

Essas comunidades foram sistematicamente “arabizadas” e “islamizadas” desde a conquista árabe-muçulmana do norte da África, no século 12. Nos países do norte da África, como o caso mais notável da Argélia, as autoridades lançaram vastas campanhas de “arabização”. Dessa forma, nem todos os árabes são realmente árabes. Seria mais exato falar de povos e nações “arabizadas” e “islamizadas” do que de mundo ou nação árabe.

Países árabes do Oriente Médio e norte da África. Em verde-escuro aqueles com maioria de população árabe, em verde-claro os que têm minoria árabe. Foto: Domínio Público

 

Em segundo lugar, porque nem todos os muçulmanos são árabes, nem todos os árabes são muçulmanos. Vejamos os sete dados fundamentais sobre árabes e muçulmanos.

  1. Nem todos os muçulmanos são árabes

Segundo as principais estatísticas coincidentes, o número de muçulmanos que há em todo o mundo chega a cerca de 1,6 bilhão, em comparação com os estimados 2,2 bilhões de cristãos. Desse total, os países árabes abrigam cerca de 380 milhões de pessoas, isto é, menos de 25% de todos os muçulmanos que há no mundo.

  1. Nem todos os árabes são muçulmanos

Enquanto o Islã é a religião na maioria das populações dos países árabes, nem todas elas são muçulmanas. De fato, estima-se que os árabes cristãos representam entre 15% e 20% da população combinada dos 22 países árabes. Portanto, os árabes muçulmanos constituem menos de um quinto dos muçulmanos de todo o mundo.

Os árabes cristãos se concentram principalmente nos territórios palestinos, no Líbano e Egito – onde representam até 13% da população total, que chega a 95 milhões de habitantes, segundo o censo de 2014. Assim, ocorre que há mais muçulmanos na Grã-Bretanha do que no Líbano, e mais na China do que na Síria, por exemplo.

  1. Os principais países muçulmanos são asiáticos

Segundo o centro norte-americano de pesquisas Pew Research Center, as porcentagens, em 2012, dos principais grupos religiosos foram: cristianismo 31,5% da população mundial, islamismo 23,2%, hinduísmo 15%, budismo 7,1%. O Pew estima que, em 2010, havia 49 países de maioria muçulmana. Destes, os países do sul e do sudeste asiático representariam aproximadamente 62% de todos os muçulmanos do mundo.

De acordo com essas estimativas, a maior população muçulmana concentrada em um único país vive na Indonésia, que briga 12,7% do total de muçulmanos. O Paquistão (com 11% do total) é o segundo país com maioria muçulmana, seguido da Índia (10,9%) e de Bangladesh (9,2%). Segundo o Pew, cerca de 20% de todos os muçulmanos vivem em países árabes, e dois Estados não árabes (Turquia e Irã) são os de maioria muçulmana no Oriente Médio.

A esse fato de os países maiores com maior número de muçulmanos não serem árabes, soma-se o fato de uma alta porcentagem da população muçulmana no mundo viver em Afeganistão, Bangladesh, Irã, Indonésia, Paquistão, Turquia e outros que não são árabes.

  1. As maiores populações muçulmanas

Estima-se que entre 75% e 90% dos seguidores do Islã no mundo são sunitas, enquanto os xiitas representam entre 10% e 20%. Os conflitos violentos, às vezes armados, que acontecem entre essas duas “escolas” de interpretação dos preceitos religiosos do Islã são frequentemente devidos a fatores políticos. Mas isso não é exclusivo dos países árabes. Recordemos o caso da Irlanda do Norte com suas três décadas de conflito armado entre as comunidades católica e protestante.

  1. Os muçulmanos não têm seu próprio Deus

Em árabe (o idioma no qual o livro sagrado dos muçulmanos, o Corão, foi escrito e difundido), a palavra “mesa” se diz “tawla”; uma “árvore” se chama “Shajarah” e um “livro” é “ketab”. Em árabe “Deus” é “Alá”. Além disso, o Islã não nega em absoluto a existência do cristianismo ou de Cristo. Os reconhece plenamente e expressa respeito à Bíblia e ao Talmud. A principal diferença é que o Islã considera Cristo como o “profeta” mais próximo e querido de Deus. Não seu filho.

  1. “Tradições” islâmicas

O Islã aterrissou no século 7 depois de Cristo nos desertos do Golfo ou da Península Árabe. Ali, já desde antes, homens e mulheres cobriam seus rostos e cabeças para se protegerem das tempestades de areia e do calor. Não se trata, portanto, de uma imposição religiosa do Islã.

E, nos desertos árabes, mesmo antes da chegada do Islã, a população tinha vida nômade, com os homens viajando em caravanas comerciais enquanto as mulheres e os idosos cuidavam da vida cotidiana de suas famílias. As sociedades árabes e, mais tarde, islâmicas eram, portanto, principalmente matriarcais. Quanto às mutilações genitais, estas são comuns ao Islã, mas também ao judaísmo (circuncisão masculina) e a muitas outras crenças religiosas, em particular na África.

E, do mesmo modo que as outras grandes religiões monoteístas, houve e há clérigos muçulmanos que foram utilizando a fé como instrumento para aumentar sua influência e seu poder. Isso explica porque tantas “novas tradições” são paulatinamente impostas aos muçulmanos. Esse é o caso, por exemplo, de questionar o direito das mulheres à educação ou de impor o hiyab (véu).

Mas tampouco isso é um caso exclusivo dos muçulmanos ao longo da história da humanidade. Basta recordar a invasão hispano-portuguesa da América Latina, onde foram exterminadas populações indígenas e o cristianismo imposto pela espada para glória de reis, imperadores e papas.

  1. A “religião” do petróleo

Outro lugar comum e, portanto, muito considerado como ciência certa, é que os produtores de petróleo são árabes e muçulmanos. Mas isso não é exato. Para começar, a Organização de Países Exportadores de Petróleo (Opep) foi criada em 1960, durante o mandato britânico no Iraque, por cinco países: Irã, Iraque, Kuwait, Arábia Saudita e Venezuela.

Mais tarde foram incorporados Catar (1961), Indonésia (1962), Líbia (1962), Emirados Árabes Unidos (1967), Argélia (1969), Nigéria (1971), Equador (1973), Gabão (1975) e Angola (2007). Em outras palavras, a Opep inclui atualmente Angola, Equador, Gabão, Nigéria e Venezuela, nenhum deles árabe ou muçulmano, mas Estados cristãos. Quanto à Indonésia e ao Irã, são países muçulmanos, mas não árabes.

Além disso, há outros grandes produtores e exportadores de petróleo e gás que não integram a Opep, como os Estados Unidos, que produzem mais petróleo (13.973.000 barris por dia) do que a Arábia Saudita (11.624.000), Rússia (10.853.000), China (4.572.000), Canadá (4.383.000, maior produção do que Emirados Árabes Unidos ou Irã ou Iraque), Noruega (1.904.000, mais do que Argélia) e México, entre outros.

Novamente, nenhum desses produtores de petróleo e gás é árabe ou muçulmano. Portanto, o petróleo não é só árabe ou muçulmano, pelo contrário: há mais petróleo “cristão” do que “muçulmano” ou árabe.

Em resumo, nem todos os muçulmanos são árabes (estes são menos de 20% do total mundial),; nem todos os árabes são muçulmanos e… nem mesmo todos os árabes são árabes. Envolverde/IPS