Sociedade

Legislativo falha ao tratar da infância no Brasil

1 em cada 3 projetos analisados foi considerado retrocesso aos direitos da criança e do adolescente. Dois em cada três retrocessos são projetos ligados à maioridade penal e à idade mínima para o trabalho infantil. No total, mais da metade tem falhas na redação.

Por Redação da Fundação Abrinq –

São Paulo, maio de 2016 – Um terço dos PLs (Projetos de Lei), das PECs (Propostas de Emenda Constitucional) e outras proposições mais relevantes em tramitação no Congresso Nacional – analisados pela Fundação Abrinq – cujos temas afetam diretamente a Criança e o Adolescente, são considerados retrocessos aos direitos da infância no Brasil. Mais da metade carece de urgente aprimoramento, porque são medidas sugeridas por deputados e senadores que ou repetem obrigações já previstas em lei ou possuem lacunas em sua redação, essenciais para sua execução efetiva. Alguns textos sofrem do chamado “vício de inconstitucionalidade” – quando a proposta invade a competência dos Poderes Executivo e Judiciário, por exemplo.

A constatação vem do documento Caderno Legislativo 2016, produzido pela Fundação Abrinq, que chega a sua terceira edição neste ano. Trata-se uma publicação de 200 páginas, lançada nesta terça-feira em São Paulo, fruto do monitoramento sistemático das proposições legislativas em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal que impactam a cidadania e a qualidade de vida do público de 0 a 17 anos.

Em 2015, a Fundação Abrinq acompanhou 1.486 propostas no Congresso Nacional com temas relacionados às áreas da infância e da adolescência. Das que ainda tramitam, 607 delas são da área de proteção; seguidas por 410 do segmento de educação e 161 de saúde. De todas, apenas uma matéria foi sancionada no ano passado e outras 14, arquivadas em 2015.

Para a terceira edição do Caderno, foram selecionadas 43 proposições que são consideradas relevantes para o cenário da infância e adolescência, incluindo 145 proposições apensadas que tramitam em conjunto. Dos 43 principais projetos, 35% deles não estão de acordo com a defesa integral dos direitos da criança e do adolescente no Brasil.

Juntamente com o lançamento do Caderno, a Fundação Abrinq lança a ferramenta online Agenda Legislativa da Criança e do Adolescente. Trata-se do monitoramento legislativo realizado pela Fundação, atualizado semanalmente, sobre a situação das proposições que tramitam no Congresso Nacional e que são relacionadas ao público dos 0 aos 17 anos. A Agenda estará disponível no site Observatório da Criança e está organizada em 27 temas.

“O alto índice – com mais da metade – das propostas de pouca efetividade, com disposições genéricas, falhas na redação, muitas vezes inconstitucionais, e carente de pequenos ajustes revela um grau de desconhecimento da realidade brasileira por parte de alguns parlamentares incompatível com a posição que ocupam na democracia”, afirma Heloisa Oliveira, administradora-executiva da Fundação Abrinq.

Falhas na redação – Um exemplo de falta de conhecimento da legislação vigente tramita no Senado, com o PL n° 6.103/2005, que quer vincular parte dos recursos do Ministério do Desenvolvimento Agrário à construção de estabelecimentos de educação infantil em assentamentos rurais. A proposição tem vários problemas de redação. O primeiro está em sua inconstitucionalidade ao criar uma obrigação a um órgão do Poder Executivo. Em segundo lugar, tal medida é uma sobreposição de leis, pois a criação de escolas no campo já é uma atribuição do Ministério de Desenvolvimento Agrário, portanto, não há inovação na proposta.

A medida também não contempla o restante da população da zona rural em idade de creche e pré-escola, composta por um contingente bem maior e diversificado de crianças além dos filhos e filhas de assentados pela reforma agrária. Por fim, o Projeto de Lei “concorre com programas em vigor que já preveem o apoio da União para a construção e equipagem de estabelecimentos, como os programas federais Proinfância, Pronera, Pronacampo, sendo os dois últimos desenvolvidos pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário”, acrescenta a Fundação Abrinq, na análise constante do Caderno Legislativo.

Também carece de aprimoramento o PL nº 8.042/2014, da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar denúncias de exploração sexual de crianças e adolescentes, que dispõe de medidas para evitar abusos desse tipo em grandes obras, como a construção de usinas, por exemplo.

A Fundação Abrinq é favorável ao aprofundamento do debate sobre o impacto social que as grandes obras podem causar às comunidades onde são desenvolvidas, mas acredita que a garantia do estudo de impacto social como requisito para o licenciamento de grandes obras deve ser constitucional, por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição, para lhe dar perenidade e conferir mais garantia ao seu cumprimento, a exemplo do estudo de impacto ambiental (art. 225, inciso IV da Constituição Federal).

O texto é adequado ao ECA, mas o legislador deveria solicitar uma lei independente para o projeto ser eficaz. Isso porque nem a Lei de Licitações (Lei nº 8.666/1993) nem a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) são instrumentos legais adequados para recepcionar a previsão e regulamentação do estudo de impacto social.

“Creches noturnas” – Também é exemplo da necessidade de aprimoramento no texto o PL n° 1.568/2015 que propõe a alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para que as creches passem a funcionar no período noturno, a fim de atender mães que trabalham ou estudam à noite.

Nesse caso, o mais indicado seria um projeto para a criação de um novo tipo de equipamento social, não exatamente uma creche, já que essa definição cabe especificamente à Educação Infantil. Até porque as atividades da criança para esse horário são diferentes das oferecidas por uma creche, e o equipamento noturno ideal deveria priorizar o descanso, a segurança e o sono do público infantil.

Ideias genéricas – A efetividade também não é o forte de algumas proposições no Congresso envolvendo a infância. O PL nº 604/2011 visa instituir uma Política de Prevenção à Violência contra os professores do ensino público e privado. Embora de notória importância, o PL não esclarece ao certo como esses objetivos seriam alcançados.

Limita-se a sugerir que as ações deverão ser “organizadas conjuntamente pelo Ministério da Justiça, por entidades representativas dos profissionais da educação, conselhos deliberativos da comunidade escolar, entidades representativas de estudantes, sob orientação do Ministério da Educação”. E, para cumprir o segundo, as ações deverão ser “aplicadas pelo Poder Público em suas diferentes esferas de atuação e consistirão em campanhas, licença remunerada ao professor que estiver em situação de risco, além do afastamento temporário dos alunos autores de atos infracionais”.

O PL nº 604/2011 não apresenta disposições inovadoras, uma vez que os direitos, os deveres e as ações pedagógicas educativas e disciplinares devem estar previstos nos regimentos internos dos estabelecimentos de ensino, que já existem para dispor sobre os casos de suspensão do aluno e de transferência compulsória e de situações quando o Conselho Tutelar e o Ministério Público da Infância e da Juventude devem ser acionados.

Não obstante, o problema da violência escolar continua preocupante e não será minimizado por esse Projeto de Lei, cujo foco é a repressão da violência por meio de intervenção sob a ótica da segurança pública. O próprio parecer do relator da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, diz que concorda “com os nobres colegas que defendem a necessidade de que o Direito Penal seja aplicado nas escolas e que haja certo grau de judicialização dos comportamentos escolares”.

A Fundação Abrinq é contrária a esse posicionamento. O PL apresenta um “estreito olhar”, pois ignora não somente o fato de que a violência nas escolas pode ter causas externas (quando reflete o fenômeno da violência da comunidade onde está inserida ou a violência doméstica), bem como se ignora a existência de violência (seja ela física, psicológica ou simbólica) também de docentes contra alunos, e destes entre si.

Para o presidente da Fundação Abrinq, Carlos Tilkian, o monitoramento das iniciativas do legislativo sobre a infância no País representa uma poderosa ferramenta de incidência política para os defensores dos direitos da criança e da adolescência. “Ao apresentarmos análises e posicionamentos sobre essas medidas, esperamos que a sociedade e nossos parlamentares possam debater os principais desafios nacionais, assim como construirmos marcos legais efetivos e inovadores”, finaliza Tilkian.

O Caderno Legislativo está disponível no link www.observatoriocrianca.org.br. (Fundação Abrinq/ #Envolverde)