Política Pública

Choque entre religiosos e LGBTI

Por Andy Hazel, da IPS – 

Nações Unidas, 2/3/2017 – As organizações religiosas conservadoras há tempo trabalham na Organização das Nações Unidas (ONU) para frear as novas interpretações de termos como “família” e “matrimônio”, consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A julgar pelo apoio recebido em 2016 pelos partidos conservadores, o mundo parece se inclinar para interpretações restritivas desses termos, em contraposição com os avanços registrados nos últimos anos, como a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a proteção dos direitos da comunidade LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais).

E, ao que parece, os enfrentamentos para ampliar ou reduzir o alcance desses conceitos recrudescerão este ano. Como costuma ocorrer na ONU e em Washington, a pressão dos grupos religiosos conservadores se dá nos bastidores e o sucesso se mede pela adoção ou não de políticas sociais mais progressistas. Duas das organizações mais ativas são o Congresso Mundial de Famílias (WCF), com seus históricos vínculos com governos africanos, russo e da Europa oriental, além de dirigentes norte-americanos conservadores, e a Aliança para a Defesa da Liberdade (ADF), com muitos êxitos obtidos na defesa dos direitos judaico-cristãos em tribunais internacionais.

Os dois grupos apresentam seu status consultivo dentro da ONU como base de sua reputação. O diretor da WCF, Larry Jacobs, afirmou que, no atual contexto político, sua organização e seus partidários se sentem otimistas. “Há 50 anos se promove uma fundamental negação da necessidade de uma família”, declarou à IPS, se referindo à diversificação da estrutura familiar, diferente do modelo nuclear tradicional que os conservadores defendem.

Jacobs acrescentou que “a maior parte disso integra a agenda de grupos favoráveis a uma revolução sexual. Creio que um de nossos maiores êxitos é proteger o artigo 16.3” (da Declaração de Direitos Humanos da ONU: a família é a unidade grupal natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado). “Outros grupos tratam de redefinir os mandatos existentes na Declaração de Direitos Humanos. A ideia de que a família é “natural” é um de nossos maiores êxitos. O papa defende a aceitação e a tolerância da homossexualidade, mas nunca apoiou a família não nuclear ou a fluidez de gênero”, ressaltou.

A WCF coordena organizações conservadoras e está vinculada a grandes mudanças de políticas ocorridas em diferentes países, como a lei russa que proíbe promover as “relações sexuais não tradicionais” e as políticas húngaras “favoráveis à família”. Essas iniciativas se relacionam com perseguição e violência contra pessoas LGBTI. Além disso, pessoas vinculadas a essa organizações incidiram na aprovação de leis proibindo a homossexualidade em vários países da África, bem como no fracasso do projeto da resolução Estrela no Parlamento Europeu, uma proposta para tratar o aborto como questão de direitos humanos e de educação padrão de saúde sexual.

Em defesa dos direitos das pessoas LGBTI, também a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, está a Comissão Internacional Gay e Lésbica de Direitos Humanos (Outright Action Internacional). Essa organização sustenta que negar a ampliação do termo “família” para além da estrutura nuclear e de “matrimônio” para além de uma união heterossexual viola os direitos humanos.

“Temos que garantir que as razões culturais ou os valores tradicionais não sirvam para prejudicar os princípios universais de direitos humanos ou a aplicação equitativa das leis existentes para todas as pessoas”, afirmou Siri May, coordenadora do programa ONU da Outright. “Agradecemos o apoio do ex-secretário-geral Ban Ki-moon, que se tornou um grande defensor da universalidade”, acrescentou.

“A homossexualidade não é um perigo, a homofobia é”, diz um cartaz carregado por um ativista da comunidade LGBTI, durante uma manifestação na capital de Cuba. Foto: Jorge Luis Baños/IPS

 

A ADF uniu-se em 2014 à WCF como organização com status consultivo na ONU, com o objetivo declarado de “ajudar a elaborar uma linguagem que afirme a liberdade religiosa, a santidade da vida, o matrimônio e a família”. O assessor Benjamin Bull escreveu: “a ADF tem voz na elaboração dos tratados e das convenções da ONU que impactem diretamente na liberdade religiosa e em outros assuntos importantes relacionadas”. “Nenhuma pessoa, em nenhum lugar, deveria ser castigada simplesmente por suas crenças cristãs”, ressaltou, que repudiava o apoio de Ban à comunidade LGBTI, com o argumento de que privilegiava “as reclamações de pessoas confusas sexualmente em prejuízo dos direitos de outras”.

Casos defendidos pela ADF nos Estados Unidos, na Europa e no Sul Global, principalmente nas Américas Central e do Sul, resultaram em acusações de violações dos direitos humanos. Um dos fatos mais importantes durante o mandato de Ban foi a criação de um relator especial para Orientação Sexual e Identidade de Gênero, cargo que foi ocupado pelo professor Vitit Muntarbhorn, que se manteve no cargo por pouco tempo porque a legitimidade do mesmo foi questionada duas vezes na Assembleia Geral da ONU, em um claro reflexo das profundas diferenças entre seus membros.

Jacobs se esforçou para esclarecer que não são uma organização que promove o ódio nem a violência contra a comunidade LGBTI. “Não somos antigays. Os homossexuais são as pessoas que mais necessitam de uma família natural. Queremos ajudar as vítimas da revolução sexual, as vítimas do divórcio, as vítimas das pessoas que têm uma vida promíscua. A questão da homossexualidade é como atendemos o que se rompeu”.

Por sua vez May observou que “a história nos diz que as unidades familiares não são um homem, uma mulher e dois filhos. Essa é uma construção ocidental. Há muitos exemplos de famílias do mesmo sexo com crianças que recebem amor. Os direitos humanos se aplicam às pessoas, e as unidades familiares são muito importantes, mas nunca devem estar acima dos indivíduos”. E pontuou que “o que sabemos da violência de gênero e dos direitos LGBTI é que são necessários para proteger as pessoas cujas famílias as colocam em risco. Têm direitos e obrigações no contexto dos direitos humanos, e estes nunca devem ser utilizados para privilegiar a heterossexualidade”.

Apesar de suas acentuadas diferenças, tanto Jacobs como May expressaram um cauteloso otimismo a respeito do enfoque do atual secretário-geral, António Guterres, um homem que ao longo de sua vida política e diplomática manteve um equilíbrio entre suas ideias socialistas e suas crenças católicas.

“Esperamos que tenha a mesma interpretação das leis de direitos humanos e dos valores culturais tradicionais que Ban Ki-moon. Nos sentimos motivados por suas declarações”, destacou May. “Mesmo quando seu partido se colocou contra ele com relação ao aborto, Guterres se manteve fiel à sua fé e aos seus valores. Não temeu falar sobre a santidade da vida, desde a concepção até a morte, desta forma, são tempos emocionantes”, enfatizou Jacobs. Envolverde/IPS