Quem nunca?
𝗦𝗮𝗺𝘆𝗿𝗮 𝗖𝗿𝗲𝘀𝗽𝗼 – Quem nunca tentou adiar um dia, uma decisão, uma obrigação? Adiar, procrastinar é humano. Nossa tosca tentativa de enganar o tempo ou a nós mesmos. .
por Samyra Crespo –
Fiz uma lista no início do ano de coisas que deveria providenciar, resolver ao longo desses 12 meses.
De memória, consulto a lista uma vez por semana.
Mas os problemas que considero ‘duros de roer’, embora continuamente invocados, continuam lá, com resolução adiada.
Adio tudo o que posso. E às vezes o que não posso.
Hoje amanheci descontente com tudo, com o coração pesado. E resolvi com paz culpada: hoje não farei nada.
É meio da semana, e há uma montanha (exagero, eu sei) de coisas por fazer: revisões no livro que desejo publicar ainda este ano, prefácios de publicações de amigos, podcasts para ouvir, pilha de livros com marcadores à cabeceira, na sala… e o pacote de outros tantos que comprei sem adquirir junto o tempo para lê-los.
Entre eles, ‘A Velhice’, ensaio de Simone de Beauvoir que resolvi resenhar.
Quantas leituras me esperando, me aguardando com coisas que sei, coisas que achava que sabia, mas não sabia bem… novidades por assimilar, dúvidas que serão nutridas…
Conversando com um amigo ontem, por vídeo chamada, fiquei com vontade rever filmes que vimos juntos nos anos 70 e 80, cinema politicamente engajado: Costa Gravas, Ettore Scola, Potencorvo, Oliver Stone, Ken Loach, Saura.
Rego plantas, decido ir ao mercado, coisa que pouco faço pois compro tudo pela internet. Ao voltar, resolvo fazer meu almoço e decido beber um pouco do vinho que sobrou de ontem, ligo o rádio para animar.
Sim, almoçar, ver o jornal televisivo que mostrará mais uma decisão controversa do Trump, a anemia do povo brasileiro que ve amorfo (alguns até comemorando) o ataque à nossa soberania e, pronta estarei para a tarde, retomar tudo o que foi ignorado… será que consigo? Sim, à tarde estarei mais disposta, eita certeza provisória!
Busco apetite numa polenta com ragu de cogumelos. Um prato só, a pia não fica miando, o sabor é bom. Tenho tudo o que preciso.
A rádio MEC toca uma sinfônica chatissima e resolvo ouvir os diálogos poético-musicais do meu amigo pianista Fábio Caramuru com os pássaros da nossa terra.
Relaxante.
Comida pronta, não vou postar. Outro dia um dos patrulheiros de plantão disse que ficamos esfregando nossos gostos culinários na cara da pobreza. Não quero ter indigestão nem sofrer o efeito dos mau-olhados virtuais.
Sento-me então para comer, olhando o mar da minha janela.
Daqui enxergo e entrada da baía e os enormes cargueiros indo e vindo, alguns apitando: nada muito delicado.
Bem longe, vindo das águas de Niterói assoma como asa de tubarão, alguém praticando wind surf. Com esse frio, só pode ser um tarado do mar. Um espírito do vento.
Suspiro. Rezo mentalmente para que ninguém me cobre atrasos e descumprimentos. E depois deste almoço, vou hesitar só um segundo (espero) entre abrir o pacote de livros e me refastelar no sofá.
Procrastinar dá uma certa aflição.
O ‘dolce far niente’ vira um motorzinho de dentista que se ouve na sala de espera, antes de sermos atendidos.
Muito chato. Chato pra caçamba! E então quero saber: cadê a paz dos aposentados?
* Samyra Crespo é ambientalista, coordenou a série de pesquisas nacionais intitulada “O que o Brasileiro pensa do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável” (1992-2012). Foi uma das coordenadoras do Documento Temático Cidades Sustentáveis da Agenda 21 Brasileira, 2002. Pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins/RJ. Ex-Gestora do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Samyra Crespo
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