Divórcio insustentável

O desencontro entre os tempos da política e os do meio ambiente constitui uma das ameaças ao sistema democrático no Século 21, afirmam acadêmicos.

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Trecho da Rodovia Transamazônica na entrada de Altamira, no Estado do Pará.

Brasília, Brasil, 27 de junho de 2011 (Terramérica).- O ambientalismo ganha legitimidade toda vez que a ciência confirma suas advertências e as catástrofes naturais se tornam mais e mais frequentes. Contudo, na hora das decisões capitais, sua debilidade política frustra os ecologistas. Isto acaba de ser confirmado na Câmara dos Deputados em Brasília, onde uma esmagadora maioria votou pela flexibilização do Código Florestalde 1965, de tal maneira que pode acelerar o desmatamento.

Foram 410 votos a favor contra 63 e uma abstenção, após meses de intensa polêmica sobre os riscos de ocorrerem a devastação amazônica, desastres ambientais e futuras perdas, inclusive para os agricultores que seriam favorecidos pela reforma. A base governista, que se dividiu na Câmara, agora tenta reduzir os danos no Senado, que deverá se pronunciar sobre o projeto nos próximos meses, uma tarefa difícil diante da pressão do setor ruralista no parlamento brasileiro, fortalecido pelo triunfo de 24 de maio na votação entre os deputados.

A decisão dos legisladores vai contra a opinião majoritária expressada em uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha para algumas organizações ambientalistas, publicada no dia 10. Das 1.286 pessoas entrevistadas, 85% disseram que proteger florestas e rios é prioritário, mesmo afetando a produção agrícola, e somente 10% escolheram a alternativa oposta, embora o Brasil seja uma grande potência agropecuária. Maiorias semelhantes se opõem a propostas aprovadas por deputados para anistiar desmatamentos ilegais e liberar os proprietários de terras da obrigação de reflorestar áreas de proteção natural, e defendem o veto presidencial se o Senado ratificar o projeto aprovado na Câmara.

A brecha entre o sentimento popular a respeito das necessidades ambientais e as decisões do poder político se repete frequentemente, mesmo em negociações internacionais sobre mudança climática, por exemplo. Entre as exigências ambientais e os mecanismos de decisão política, pelo menos na democracia, se produz um “choque de temporalidades”, segundo Elimar Nascimento, diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade Nacional de Brasília (UNB).

Enquanto “a crise ambiental exige medidas de longo prazo” contra riscos que podem madurar em décadas, a política é de “reprodução imediata”, e reclama resultados rápidos para garantir a reeleição em poucos anos, explicou Elimar ao Terramérica. Este “desencontro” entre os tempos da política e os do meio ambiente é uma das ameaças ao sistema democrático, segundo acadêmicos reunidos na cidade francesa de Poitiers, no âmbito da Universidade de Verão do Institut International de Recherche, Politique de Civilisation (Instituto Internacional de Pesquisa, Política de Civilização), que discute a provocativa dúvida sobre se a “democracia sobreviverá ao Século 21”, disse Elimar, participante do grupo.

Outros fatores que atuam contra a democracia são o enfraquecimento da representatividade de partidos e governos, a tendência a se tomar decisões públicas em círculos privados, a rejeição de alguns povos e culturas, especialmente na Ásia e África, e a erosão da política como fonte de mudanças sociais, superada por inovações tecnológicas. Há esperança, segundo o professor da UNB, nos movimentos que surgiram nos últimos meses na Espanha, como o 15 de Maio, e nos países árabes, que buscam “uma nova maneira de fazer política”, recorrendo à internet e às redes sociais.

Uma saída para superar contradições, como a desatada no Brasil entre agricultores e ambientalistas, é a de adotar “mecanismos econômicos” que favoreçam a valorização das florestas e de outros recursos naturais, disse ao Terramérica o engenheiro florestal e ex-secretário de Desenvolvimento Sustentável e Ambiental do Estado do Amazonas, Virgilio Viana.

O brasileiro de origem rural acredita que a vegetação nativa é mato, um obstáculo à atividade produtiva que deve ser limpa, e não reconhece que sua presença ao redor das nascentes e dos rios garante a água indispensável para a agricultura. Tampouco vê que as florestas mantêm as abelhas que polinizam as árvores frutíferas e protegem das pragas as plantações, lamentou.

A remuneração desses serviços ambientais, para que os agricultores mantenham as florestas, é, em sua opinião, um poderoso instrumento para “mudar o modelo”. Esta é a questão central que deveria ser incluída no debate atual, disse Virgilio, superintendente-geral da Fundação Amazonas Sustentável, criada exatamente para pagar “bolsas florestais” aos moradores de áreas de conservação do Amazonas que ajudem a manter as selvas. Ao contrário do que pensa a maioria dos ecologistas, a legislação ambiental brasileira “é péssima”, porque é violada de forma generalizada e porque se baseia muito em castigos e controle repressivo, e esquece os estímulos, afirmou Virgilio, que, no entanto, rejeita a “anistia” aprovada pelos deputados para quem desmatou ilegalmente.

O Código Florestal foi adotado em 1965 e sofreu alterações como a de 2001, que ampliou a proporção de reserva legal – área de vegetação nativa que deve ser conservada em cada propriedade rural –, de 50% para 80% da superfície das propriedades situadas na Amazônia Legal, uma delimitação que inclui os Estados parcial ou totalmente cobertos por este bioma. O que os agricultores querem é “segurança jurídica”, uma lei que não seja modificada frequentemente por decretos e outras medidas que colocam quase todos eles na ilegalidade, reclamou Seneri Paludo, diretor-executivo da Federação de Agricultura e Pecuária do Estado do Mato Grosso, que reúne os maiores produtores de soja do país.

Em sua opinião, a reserva legal é “um erro” brasileiro, pois exige que o proprietário rural cumpra uma função pública equivalente a manter parques nacionais. Para cumprir a lei, a agricultura deve se expandir para áreas cada vez mais profundas da Amazônia, já que só pode aproveitar 20% de cada propriedade, provocando mais danos e alongando as estradas, disse Seneri ao Terramérica. As polêmicas desnudam o conflito entre os interesses econômicos, especialmente dos proprietários rurais, e a crescente consciência ambiental da população.

Entretanto, nas decisões parlamentares prevalecem os interesses imediatos. Para a ativista Adriana Ramos, do Instituto Socioambiental, essa distorção só será corrigida com uma reforma política. O financiamento público das campanhas eleitorais, os planos de metas e de outros compromissos que devem ser cumpridos, a prestação de contas e outras regras éticas forçariam o parlamento e os políticos a refletirem melhor os desejos do eleitorado, ressaltou.

* O autor é correspondente da IPS.

LINKS

Nova lei florestal pode afetar metas climáticas

Ceticismo diante de medidas contra a violência na Amazônia

Jornada funesta para a Amazônia brasileira

Impotência ambientalista diante de cartas marcadas

Reforma do Código Florestal antecipa mais catástrofes no Brasil, em espanhol

Pesquisa do Datafolha, em pdf

Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade Nacional de Brasília

Fundação Amazonas Sustentável, em português e inglês

Federação de Agricultura e Pecuária do Estado do Mato Grosso

Instituto Socioambiental

Atual Código Florestal Brasileiro – Lei 4.771 de 1965, em pdf

Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.