Cabeças de papel

Quando o já centenário jornal O Estado de S.Paulo deixou suas antigas instalações da Rua Major Quedinho, no centro de São Paulo, em 1976, para ocupar o majestoso prédio que construíra na Avenida Engenheiro Caetano Álvares, 55, junto à Marginal do Rio Tietê, corria à boca pequena nas redações paulistanas uma profética maldade: o Estadão agora, dizia-se, tem mais engenheiros do que jornalistas. E como todo boato tem um fundo de verdade, como cantava o velho samba de João Roberto Kelly, o chiste de então não era de todo desprovido de boas doses de realidade. O novo prédio era (é) enorme, com 40 mil metros quadrados de área construída, uma massa de concreto a se destacar em uma região à época quase deserta – e bem fornido de legiões de engenheiros responsáveis pela montagem e manutenção dos equipamentos industriais, no comando das operações logísticas e com assento nos núcleos decisórios da empresa.

A mudança fora anunciada com a devida pompa na edição de 4 de janeiro de 1974, dia do aniversário do jornal, que no ano seguinte comemoraria seus primeiros 100 anos de existência. O texto da página 15, em oito colunas (sim, os jornais eram diagramados em oito colunas), vinculava a nova sede a “um jornal ainda mais completo, ligado mais diretamente às fontes de informação do mundo inteiro e impresso com os últimos recursos da técnica eletrônica, [que] chegará muito mais cedo às mãos dos seus leitores a partir do segundo semestre de 1975, quando O Estado de S.Paulo estará ocupando suas novas instalações na Marginal do Tietê”. O terço inferior da página era tomado por um calhau da Rádio Eldorado, do Grupo Estado.

Houve contratempos, porém. A mudança só se concretizou em 1976, meses depois do prazo previsto, e, a julgar pelo fino traço de Hilde Weber (1913-1994), chargista do jornal, deu-se de forma algo atabalhoada (ver abaixo). Afora os percalços naturais de uma transferência de pessoas, móveis, máquinas e equipamentos dessa magnitude, os investimentos destinados à construção da nova sede provocaram um tremendo rombo no caixa da empresa e passaram-se anos até que os prejuízos pudessem ser devidamente equacionados. Até a próxima crise.

O chamado “milagre econômico” brasileiro já estava pela tábua da beirada e a dívida do Grupo Estado mantinha-se consolidada em dólar, junto ao Banco de Boston. Há informações seguras de que, antes da maxidesvalorização cambial capitaneada pelo então ministro do Planejamento Antonio Delfim Netto, em dezembro de 1979, numa prosaica festa de casamento no Guarujá a fina flor dos Mesquita obteve antecipadamente a preciosa informação, e de posse dela conseguiu salvar a empresa de um desastre de proporções inimagináveis. Mas esta é uma outra história.

Notícias na tela

A digressão histórica vem a propósito da notícia de mais uma mudança importante no Estadão, dentre as tantas por que vem passando nos últimos anos, em especial aquelas provocadas a partir da popularização da internet e da revolução suscitada pelos novos padrões de conectividade e interatividade. A grandiosidade do espaço físico ocupado pela empresa agora conta pouco, e o que vale mais é a qualidade da inteligência embarcada nos empreendimentos editoriais.

A nova configuração do jornal, anunciada na sexta-feira (5/4), muito provavelmente melhorará os indicadores financeiros da empresa no curto e médio prazos, mesmo porque é resultado de “um grupo de trabalho multidisciplinar (…) que congregou todas as áreas da empresa, [e] trabalhou durante 6 meses na revisão detalhada de todo o processo produtivo”. Não se deve duvidar da capacidade da engenharia de cortes de despesas envolvida na operação – esse pessoal não dá ponto sem nó. Mas, de outra parte, pelo menos à primeira vista a mudança não traz nada além de uma guaribada no produto papel, nenhuma proposta inovadora no segmento do jornalismo digital, nada de onde se infira uma diretriz editorial que privilegie investimentos no conteúdo oferecido à audiência. Uma reforma, em suma, pensada com cabeça de papel.

Para ficar apenas no exemplo mais eloquente, dá-se fim a um suplemento da qualidade do “Sabático”, responsável pela melhor cobertura de livros da imprensa brasileira, para não colocar nada no lugar – nem no papel, nem na web. As incursões na área digital, nesse primeiro momento, ficaram restritas a um aplicativo que o jornal desenvolveu para ser embutido em aparelhos de televisão Samsung, que “possibilitará ao usuário ter acesso a notícias diretamente sobre o vídeo que estiver assistindo” (ver “Estado é primeiro jornal brasileiro nas TVs conectadas”). Grande coisa. Mais vale um gadget na mão do que uma proposta editorial voando.

Quatro grandes

Reestruturações de processos produtivos que implicam dispensa de mão de obra qualificada sempre correm o risco de dar com os burros n’água. É uma questão de tempo. Engenheiros são brilhantes no manejo de projetos e planilhas, sabem extinguir jornais – como o fizeram com o Jornal da Tarde – mas têm dificuldades em compreender os benefícios da saudável diversidade que já caracterizou as melhores redações do país.

Enxugar pessoal, reduzir o número de páginas e acabar com chamada “edição nacional” não traz novidade alguma – mesmo porque algo como 90% da circulação do Estadão se concentra na Grande São Paulo e nas regiões metropolitanas de Campinas, Baixada Santista e Vale do Paraíba, próximas à capital. E embora os novos tempos sejam propícios à homogeneização de corações e linguagens, à imagem e semelhança de seus mentores, nesta última reforma o Estado de S.Paulo pode estar jogando fora uma rara oportunidade radicalizar na diferenciação, de apostar na qualidade jornalística em átomos e em bits, e com isso demarcar no mercado jornalístico uma postura própria, distinta da concorrência. Mais investimento em jornalismo, não menos.

Entre os quatro mais importantes jornais do país, o Valor Econômico (sociedade dos grupos Folha e Globo) corre sozinho em seu nicho de mercado, e estreou recentemente o Valor PRO, um serviço de informações financeiras concorrente direto do Broadcast, da Agência Estado; a Folha de S.Paulo conta um bem posicionado jornal local – o Agora, em São Paulo – e o UOL, o maior portal de internet do país, em conteúdo e serviços; e o diário O Globo está alicerçado no mais poderoso grupo multimídia do Brasil.

E o Estado de S.Paulo tem o quê, depois da perda do Jornal da Tarde, do fim dos negócios de listas telefônicas e classificados (a mina de ouro na era pré-digital) e das operações erráticas na área de rádio? Tem um monte de acionistas. E está desperdiçando o melhor de sua tradição centenária: a excelência do conteúdo.

* Publicado originalmente no site Obervatório da Imprensa.