Reduzir álcool na gasolina é paliativo

A decisão de reduzir o percentual de álcool na gasolina de 25% para 20% corre o risco de não alcançar os objetivos do governo, ter efeitos colaterais negativos muito superiores aos poucos benefícios que possa gerar.

O Brasil tem uma mania velha de décadas: nunca tem política de precaução, olhando par a frente. Sempre adota medidas de emergência, surpreendido por eventos anunciados. Nunca tenta prever os efeitos colaterais dessas medidas de afogadilho. Tarda a agir sobre as causas do problema, quando o faz.

Acaba de acontecer de novo com essa decisão sobre o etanol. Reduzir em 5%, ameaçando reduzir ainda mais, a mistura de álcool anidro na gasolina, dificilmente atingirá o objetivo proposto pelo Ministério das Minas e Energia, de “regularizar o abastecimento” de etanol. Mas terá efeitos não antecipados pelo governo que pioram o bem-estar da população e aumentam nossas emissões de carbono.

Mais gasolina nos automóveis já é ruim em si. Aumenta as emissões de gases estufa e piora a qualidade do ar. O governo errou o timing, o diagnóstico, a avaliação do problema e das políticas que poderiam mitigar seus efeitos e no julgamento do que deveria oferecer, preferindo o paliativo à solução estrutural para o problema.

A pressão de demanda de etanol é global. Problemas climáticos têm afetado a a safra das culturas dedicadas à produção de etanol no EUA , na Europa, no Caribe e no Brasil por vários anos. Empurrados por dificuldades na oferta e aumento na demanda, os preços do açúcar e do álcool aumentaram globalmente. O Brasil tem importado etanol do EUA, produzido de milho, com preços elevados. Fez isso no ano passado e está fazendo novamente este ano, em que o preço no EUA está no topo e a demanda prejudicada. A Petrobrás, que faz essa importação subsidia esse álcool para os distribuidores. Mas o álcool doméstico entra na bomba sem subsídio. Em suma, só medidas que desajustam ainda mais o mercado, as contas do governo e da Petrobrás, sem ajustar coisa alguma no mercado.

Nenhuma medida isolada no mercado doméstico pode alterar significativamente o preço do etanol no mercado global. Como o álcool e o açúcar são commodities globais, seu preço de referência será sempre o do mercado internacional. Se o preço do açúcar for superior ao do etanol, as usinas produzem mais açúcar para exportar. Parte do álcool liberado pela redução da mistura provavelmente será exportada.

A pressão de demanda do etanol não é doméstica. Ao contrário. Domesticamente, a maior parte dos anos de 2010 e de 2011, os preços do etanol mantiveram uma diferença em relação aos da gasolina misturada (75 gasolina: 25 etanol) inferior a 30%. Como o motor flex consome perto de 30% mais quando roda com álcool do que quando abastecido com gasolina, só compensa encher o tanque com o biocombustível se o preço estiver 30% ou mais abaixo do preço da gasolina. Como não é o caso, a demanda que está pressionada é a de gasolina misturada, não de álcool. O álcool com maior demanda é o anidro para misturar à gasolina. Estima-se que hoje 80% dos carros flex estejam rodando com gasolina misturada.

O preço da gasolina está congelado. O preço do álcool é que está subindo. Ao tirar 5% de álcool da gasolina, na verdade uma redução da ordem de 20% na mistura, o preço da gasolina misturada cairá na bomba. O consumo de gasolina receberá estímulo ainda maior. Dificilmente essa liberação de álcool anidro terá efeito comparável no preço do álcool, a ponto de induzir o consumidor a abastecer seus carros flex com etanol, em lugar de gasolina misturada, reduzindo a demanda por álcool anidro.

A consequência imediata da redução do preço da gasolina será o aumento do consumo de gasolina e do uso do automóvel particular. Logo, maior demanda por álcool anidro, mais emissões e poluição. Mais gastos com saúde pública. O aumento de veículos particulares nas ruas, geralmente conduzindo apenas um passageiro, piora o engarrafamento e estende o horário de rush. É comum as pessoas nas grandes cidades brasileiras reclamarem que “parece que estamos sempre na hora do rush”. É que a “hora” pode se prolongar por duas, três, quatro, no trajeto trabalho-casa, porque o trânsito está mais lento. A política para o etanol está na contramão da lógica da economia.

Tráfego congestionado significa que a grande quantidade de ônibus em circulação com diesel altamente poluente leva mais tempo bombeando sua fumaça tóxica para completar cada ciclo de seu trajeto. Essa quantidade de ônibus é desnecessária. Poderia ser muito reduzida se a engenharia de trânsito fosse atualizada, passando a adotar princípios de logística inteligente, racionalizando trajetos, linhas e reduzindo o tamanho da frota. Fiscalização mais adequada e menos corrupção também permitiram frotas de ônibus mais novos e menos poluentes. Boas políticas de transporte e logística associadas a objetivos gerais de sustentabilidade, permitiriam substituir ônibus por veículos elétricos, bondes modernos, veículos leves sobre trilhos ou, no mínimo, por BRTs (Bus Rapid Transit) uma solução tipicamente de transição, temporariamente benéfica. Mas logística urbana é assunto para outro post.

O ministro das Minas e Energia, cuja compreensão das complexidades da produção de biocombustíveis é ainda menor que a escassa intimidade que tem com questões de energia em geral, diz que é uma medida de “segurança”, uma “medida de precaução”. Ao que parece o ministro tem pouca compreensão do que significam “segurança” e “precaução”. As duas pressupõem medidas de prevenção. Assegurar o abastecimento e evitar consequências negativas são objetivos que se alcançam apenas com medidas que se antecipam a efeitos previstos e que resolvem os problemas estruturais que produzem efeitos adversos.

O ministro se considera precavido porque imagina que esteja evitando consequências adversas sobre a oferta de etanol de safras comprometidas este ano e no ano que vem. Esses problemas de safra já estavam previstos muito antes. A cultura da cana sofre com problemas estruturais e climáticos há bem mais tempo. O ministro não parece ter visto.

Medidas de segurança são aquelas que o governo anterior, no qual esse ministro ocupava o mesmo cargo, deveria ter tomado e não tomou para estimular e acelerar a renovação dos canaviais e o aumento de produtividade por hectare. Medidas que o governo atual deveria ter reforçado de imediato e não o fez.

O ministro das Minas e Energia não olha para os problemas da agricultura, nem mesmo quando se trata de produzir biocombustíveis, ou seja, combustíveis de base agrícola. O ministro da Agricultura talvez se interesse menos do que deveria pelos problemas de produção de álcool, um tema que talvez imagine deva pertence ao orçamento das Minas e Energia, embora o etanol seja, essencialmente, um produto agrícola, agroindustrial. Este é um dos dilemas dos biocombustíveis. Estão naquela zona de falta de visão tanto da política agrícola, quanto da política energética.

A marca dos governos brasileiros é sempre essa: decisões fragmentadas, compartimentadas, da mão para a boca, sem pensar nos efeitos colaterais adversos, sem olhar o problema por todos os seus ângulos, sem prevenção. Na reunião que decidiu a medida, estavam com a presidente os ministros das Minas e Energia, Agricultura, Fazenda e Casa Civil. Mas não estava a ministra do Meio Ambiente, embora os principais efeitos adversos dela sejam aumento das emissões de gases estufa e piora da qualidade do ar. Nem tampouco estava o ministro da Saúde, cujo orçamento será pressionado pelo aumento da demanda por atendimentos ambulatoriais e hospitalares por causa do agravamento das doenças respiratórias e cardiovasculares provocadas pela poluição do ar. A qualidade do ar está piorando em todo o Brasil. As poucas medições que se tem feito indicam isso.

Em pesquisa que coordenei em seis áreas metropolitanas, em 2007, obtive as seguintes respostas. Na região metropolitana de São Paulo: 75% dos entrevistados disseram que eles mesmos ou suas famílias usavam medicamentos para tratar de problemas de saúde cuja causa diagnosticada era a poluição do ar; 69% precisaram de assistência médica por estas razões; 35% necessitavam de controle médico permanente; e 13% de internações recorrentes. Na RM do Rio de Janeiro, os resultados foram os seguintes: uso de medicamentos, 80%; assistência médica, 65%; controle médico permanente, 42%; internações, 13%. Belo Horizonte: uso de medicamentos, 84%; assistência médica, 70%; controle médico permanente, 37%; internações, 17%. Porto Alegre: uso de medicamentos, 79%; assistência médica, 77%; controle médico permanente, 54%; internações, 19%. Curitiba: uso de medicamentos, 74%; assistência médica, 72%; controle médico permanente, 46%; internações, 16%. Recife: uso de medicamentos, 75%; assistência médica, 67%; controle médico permanente, 35%; internações, 20%.

Como se vê, nada trivial. O que isso custa ao sistema público de saúde, o ministério da Saúde não sabe. Não será pouco. Toda vez que o governo toma medidas que pioram a qualidade do ar, aumentam os gastos com saúde. Todos reclamam da falta de recursos para saúde, mas ninguém olha para os gastos que poderiam ser suprimidos por doenças evitáveis, mas que dependem de políticas do governo como um todo e não da política de saúde.

Os principais problemas do país, que oneram o orçamento público e fazem nosso gasto fiscal parecer incomprimível, estão em áreas fora do estreito e compartimentado campo de visão do poder público. Este só parece saber olhar pelo retrovisor e à frente, mas para baixo, para o pedaço de tempo em que está, nunca para cima, para o horizonte das possibilidades e dos eventos antecipáveis.

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** Publicado originalmente no site Ecopolítica.