Internacional

Engenheiras indígenas mudaram seu povoado

Liliana Terán (esquerda) e sua prima Luisa, ambas engenheiras capacitadas em energia solar no Barefoot College (Universidade Descalça) da Índia. Com a instalação de energia solar em Caspana, norte do Chile, elas conseguiram mudar a vida de sua aldeia e a delas próprias. Foto: Marianela Jarroud/IPS
Liliana Terán (esquerda) e sua prima Luisa, ambas engenheiras capacitadas em energia solar no Barefoot College (Universidade Descalça) da Índia. Com a instalação de energia solar em Caspana, norte do Chile, elas conseguiram mudar a vida de sua aldeia e a delas próprias. Foto: Marianela Jarroud/IPS

Por Marianela Jarroud, da IPS – 

Caspana, Chile, 1/9/2015 – Liliana e Luisa Terán, duas mulheres indígenas que viajaram à Índia para se capacitarem em energia solar fotovoltaica, conseguiram mudar não apenas seus destinos, mas o de toda Caspana, uma aldeia chilena escondida em um belo lugar em pleno deserto de Atacama. “As pessoas custaram a aceitar o que aprendemos na Índia. Inicialmente não viram com bons olhos, porque somos mulheres, mas aos poucos foram se entusiasmando e agora nos respeitam”, afirmou Liliana à IPS.

Sua prima, Luisa, recordou que, antes de viajar à Ásia, no povoado havia mais de 200 interessados em contar com energia solar, mas, quando souberam que seriam elas as encarregadas da instalação e manutenção dos painéis e baterias, esse número caiu para 30. “É que neste povoado existe um conselho, uma comunidade, composta pelos idosos, os avós, e que toma as decisões. É um grupo ao qual eu jamais pertencerei”, afirmou Luisa, com um suspiro refletindo que sua decisão é garantia de sua liberdade.

Luisa tem 43 anos, é esportista, solteira e com uma filha de criação, exerce a agricultura familiar e o artesanato em pintura rupestre. Depois de terminar a escola secundária em Calama, capital do município situada a 85 quilômetros, fez diversos cursos, incluindo alguns de pedagogia. Liliana, de 45 anos, casada e com quatro filhos e quatro netos, se dedica a limpar o asilo do povoado e à pequena agricultura familiar. Também terminou o secundário e fez cursos de turismo porque acredita que essa atividade complementar permitirá estancar o êxodo das pessoas do povoado.

Essas mulheres, de olhos um tanto rasgados e pele curtida pelo sol do deserto, de voz doce e vida de sacrifícios, são as encarregadas de dar a Caspana ao menos uma parte da autonomia energética que seu povoado precisa para sobreviver.

Caspana – que em língua kunza, extinta no final do século 19, significa “filhos da profundeza” – fica a 3.300 metros de altitude, em uma zona profunda do vale de El Alto Loa. Tem oficialmente 400 habitantes, embora apenas 150 permaneçam toda a semana, enquanto outros voltam nos finais de semana, contou Luisa. Pertencem ao povo atacama, kunza ou apatama, que atualmente subsiste no noroeste da Argentina e norte do Chile. “A cada ano partem dez famílias de Caspana, principalmente pelos estudos das crianças e por trabalho dos jovens.

A aldeia indígena de Caspana fica a 3.300 metros de altitude, no deserto de Atacama, norte do Chile. Seus 400 habitantes vivem da pequena agricultura, como indicam orgulhosos na pedra à entrada do lugar. Agora, graças ao esforço de duas mulheres, têm eletricidade em suas casas, gerada por painéis solares, que já são parte de sua paisagem. Foto: Marianela Jarroud/IPS
A aldeia indígena de Caspana fica a 3.300 metros de altitude, no deserto de Atacama, norte do Chile. Seus 400 habitantes vivem da pequena agricultura, como indicam orgulhosos na pedra à entrada do lugar. Agora, graças ao esforço de duas mulheres, têm eletricidade em suas casas, gerada por painéis solares, que já são parte de sua paisagem. Foto: Marianela Jarroud/IPS

Até 2013, a aldeia tinha apenas um gerador elétrico, que fornecia a cada casa duas horas e meia de luz à noite. Quando o gerador falhava, o que era frequente, ficavam às escuras. Agora o gerador é apenas uma alternativa para as 127 casas que ganharam autonomia de três horas diárias de luz, graças à instalação solar que as duas primas realizaram. Para a geração de energia, cada casa conta com um painel de 12 volts, uma bateria de 12 volts, uma lâmpada LED de quatro amperes e uma caixa de controle de oito amperes.

Esse equipamento foi doado em março de 2013 pela empresa italiana Enel Green Power. Também foi responsável, junto com o Serviço Nacional da Mulher e a Secretaria Regional Ministerial de Energia, pela capacitação das duas primas no Barefoot College (Universidade Descalça), famosa organização social da Índia. Até o momento, 700 mulheres de 49 países da Ásia, África e América Latina fizeram esse curso para serem “engenheiras solares descalças”.

Esse título as torna responsáveis por instalar, reparar e dar manutenção às unidades fotovoltaicas em suas aldeias, por um período mínimo de cinco anos, e montar uma oficial eletrônica rural para guardar os componentes necessários e que funcione como uma minicentral elétrica com potência de 320 watts por hora.

As duas primas viajaram em março de 2012 à aldeia indiana de Tilonia, no Estado de Rajastán, onde fica a sede da universidade de educação popular. Não estiveram sozinhas. Da aventura também participaram as quéchuas Elena Achú e Elvira Urrelo, e a aymara Nicolasa Yufla, que vivem em outras aldeias do deserto de Atacama, na região de Antofagasta.

“Chegou até nós a notícia de que procuravam mulheres entre 35 e 40 anos para se capacitarem na Índia. Me interessei muito, mas fiquei na dúvida quando soube que eram seis meses. Era muito tempo longe da família”, recordou Luisa. Animada por sua irmã, que assumiu os cuidados de sua filha, decidiu empreender a viagem, mas sem dizer nada a ninguém.

Na Índia se depararam com uma realidade oposta à que, asseguram, lhes fora prometida. Dormiam em colchonetes sobre camas duras de madeira, os quartos eram cheios de bichos, não podiam esquentar água para o asseio e a comida era completamente diferente. “Sabia o que queria, mas demorou três meses para me adaptar, principalmente às comidas e ao calor intenso”, disse Luisa.

Hoje ela lembra entre risos que passou muito tempo doente do estômago. “Era muita fritura. Emagreci muito, porque nos seis meses só comi arroz”, afirmou Luisa. Depois, olhando para Liliana, caiu na risada ao lembrar que “ela também comeu só arroz, mas engordou”. Liliana contou que no Chile sua família a esperava com assado, empanada e massa frita. “Mas eu só queria sentar e comer uma caçarola, um pedaço de carne”, disse, se referindo a um prato típico que consiste em uma sopa com carne, batata e abóbora.

Escola primária de Caspana, 1.400 quilômetros ao norte de Santiago do Chile. Duas primas indígenas, capacitadas como engenheiras solares, conseguiram que as autoridades municipais instalassem painéis solares para iluminar os prédios públicos e suas poucas ruas, enquanto elas instalaram os painéis em 127 de suas moradias. Foto: Mariana Jarroud/IPS
Escola primária de Caspana, 1.400 quilômetros ao norte de Santiago do Chile. Duas primas indígenas, capacitadas como engenheiras solares, conseguiram que as autoridades municipais instalassem painéis solares para iluminar os prédios públicos e suas poucas ruas, enquanto elas instalaram os painéis em 127 de suas moradias. Foto: Mariana Jarroud/IPS

Ao retornarem, ambas começaram a implantar o que haviam aprendido. Por uma pequena quantidade, equivalente a US$ 45, instalaram o kit solar nas casas do povoado, construídas com pedra-pomes e teto de barro. Atualmente, a comunidade paga US$ 75 a cada uma pela manutenção bimestral dos 127 painéis que conseguiram instalar no povoado.

“Nós levamos isso a sério. Por exemplo, exigimos da Enel que os materiais não fossem os básicos, mas que entregassem tudo que fosse necessário para a instalação”, pontuou Luisa. “Chegaram baterias ruins, mais de dez, e pedimos para trocá-las, mas disseram que não”, recordou. A empresa também fez com que assinassem um documento no qual era encerrada a relação. “Por isso, agora mais de 40 casas esperam para ter luz solar”, acrescentou.

“Queremos ampliar a capacidade das baterias, que os painéis nos sirvam para ligar um refrigerador, por exemplo. Mas o mais urgente agora é instalar nessas 40 casas o que precisam”, apontou Luisa. Entretanto, “as pessoas deste povoado não têm dinheiro para pagar um kit solar”, por isso devem ser doados, afirmou.

Apesar de tudo, ambas reconhecem que estão contentes, que agora sabem que são importantes para sua aldeia, apesar de todas as dificuldades, e que, apesar da extrema pobreza da qual foram testemunhas na Índia, voltariam a viajar. “Estou supersatisfeita e contente, as pessoas nos valorizam, valorizam o que fazemos”, afirmou Liliana. “Muitos ‘velhos’ tiveram que ver o primeiro painel instalado para se convencerem de que isto servia, que podia nos ajudar e que valia a pena. E hoje o resultado já é visível: há lista de espera”, acrescentou.

Luisa acredita que elas contribuíram para que em Caspana mude a percepção sobre as mulheres, porque os mesmos patriarcas do conselho reconhecem que poucos homens teriam se atrevido a viajar tão longe para aprender algo para beneficio da comunidade. “Em alguma coisa ajudamos para que haja mais respeito por todas as mulheres”, afirmou.

Inclusive a Municipalidade de Calama, da qual depende Caspana, ao ver seu trabalho e diante de sua insistência, as apoiou com a instalação de painéis para a iluminação pública e agora os serviços públicos básicos, como o consultório médico, contam com energia solar. “Quando pinto, às vezes vem me acompanhar uma vizinha ou um vizinho. E depois de algum tempo me perguntam sobre a viagem. E eu a revivo, lhes dou detalhes. No fundo sei que essa experiência me acompanhará por toda a vida”, ressaltou Luisa. Envolverde/IPS

* Esta reportagem faz parte de uma série concebida em colaboração com Ecosocialista Horizonz