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Países em desenvolvimento criam remédios contra aids infantil

Crianças com HIV, da aldeia Muhanga, em Rwanda. Foto: Aimable Twahirwa/IPS

Rio de Janeiro, Brasil, 29/8/2011 – Uma aliança científica com protagonismo de países em desenvolvimento assumiu o desafio de criar medicamentos contra a aids infantil, uma área que deixou de interessar aos grandes laboratórios quando a transmissão mãe-filho do vírus HIV (causador da doença) foi praticamente eliminada nas nações ricas. No programa para desenvolver novos medicamentos pediátricos contra o HIV está empenhada a Iniciativa Medicamentos para Enfermidades Esquecidas (DNDi), uma associação internacional sem fins lucrativos.

O programa focará exclusivamente em remédios para recém-nascidos e crianças com até três anos de idade, os mais esquecidos pela atual oferta farmacêutica. A DNDi pretende oferecer os novos tratamentos entre 2014 e 2016. De acordo com o diretor executivo da DNDi, Bernard Pécoul, nos países desenvolvidos a infecção por HIV em recém-nascidos foi quase eliminada com a prevenção da transmissão mãe-filho em mulheres grávidas que vivem com o vírus. Por isto, “há pouco incentivo para que os laboratórios desenvolvam fórmulas infantis de antirretrovirais (ARV)”, disse Pécoul à IPS, de Genebra.

A grande maioria das crianças com HIV vive em países pobres ou em desenvolvimento, e muitas de suas famílias “não têm dinheiro para comprar remédios caros”, acrescentou o diretor da DNDi, criada em 2003 por entidades públicas de ciência médica de Brasil, Quênia, Índia e Malásia, pelo Instituto Pasteur da França, pela organização Médicos Sem Fronteiras MSF) e pelo Programa de Pesquisa e Treinamento em Doenças Tropicais, que atua como observador. As entidades dos países em desenvolvimento são a brasileira Fundação Oswaldo Cruz, o Conselho Indígena de Pesquisa Médica, o Instituto de Pesquisa Médica do Quênia e o Ministério da Saúde da Malásia.

Estima-se que no mundo em desenvolvimento existam 2,5 milhões de menores de 15 anos com HIV, a maioria na África subsaariana. Apenas 28% das crianças que necessitam de antirretrovirais os recebem. E, sem tratamento, um terço delas morre no primeiro ano de vida e a metade antes dos dois anos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda tratamento imediato para todos os menores de dois anos, mas a segurança e as doses adequadas de muitos ARV para adultos ainda não existem para os grupos de pacientes mais jovens, segundo Pécoul.

“É aqui que a DNDi pode desempenhar um papel crucial”, disse à IPS a advogada Leena Menghaney, que trabalha para o MSF na Índia. Com 1,1 bilhão de habitantes, este país registrava, em junho deste ano, 403.567 adultos com HIV/aids e 25.071 casos pediátricos. “A entrada desta aliança no desenvolvimento de remédios pediátricos foi posterior a uma análise que mostrou que as crianças com HIV são um setor esquecido da população. Além disso, no mundo em desenvolvimento, as patentes dos medicamentos antirretrovirais complicam a criação e fórmulas infantis”, acrescentou a advogada.

Pécoul deu como exemplo o uso, em lugares de poucos recursos, de uma combinação em dose fixa dos remédios estavudina (d4t), lamivudina (3TC) e nvirapina (NVP). O d4T já não é preferível por causa de sua toxidade, e o NVP não é recomendado para crianças que já foram expostas a ele durante a gestação, no tratamento de prevenção materno-infantil, já que o vírus pode ter desenvolvido resistência ao medicamento. O diretor da DNDi acrescentou outros problemas, como o “gosto desagradável” que têm muitos antirretrovirais, que faz com que as crianças não queiram tomá-lo. Os remédios infantis exigem múltiplas e complexas preparações líquidas, ajustadas ao peso da criança, que são de difícil manipulação para os responsáveis por administrar o remédio.

Os médicos também têm dificuldades para escolher devido à incompatibilidade dos ARV pediátricos com os medicamentos antituberculose. A coinfecção HIV-tuberculose é muito comum na África, onde chega a 50%, em alguns contextos. A tuberculose é uma das principais causas de morte de crianças e adultos com HIV, explicou Pécoul. Quem conhece esses limites é a enfermeira Janice Wanja, da Clínica Afya, que fica no coração dos superlotados bairros de Dandorra, subúrbio do leste de Nairóbi, no Quênia.

Neste país, à falta de remédios pediátricos se somam outros problemas, como o estigma que pesa sobre o HIV, que leva a maioria dos pais e tutores a não informarem as crianças que estão com o vírus. Como resultado, “a maioria das crianças não conhece seu estado de saúde, e isto faz com que não levem a sério a medicação”, lamentou Wanja. A OMS orienta que “informar as crianças de mais idade quando são diagnosticadas portadoras do HIV melhora sua adesão” aos remédios.

Dados do governo indicam que de 1,4 milhão de pessoas que vivem com HIV/aids no Quênia, 180 mil são crianças. Porém, contam com tratamentos antirretrovirais somente 40 mil, 22% das que deles necessitam. Neste país de 41 milhões de habitantes, 90% dos casos infantis de HIV se devem à transmissão mãe-filho. Outro desafio para os tratamentos é a desnutrição infantil, que se agravou nos últimos meses no Quênia e em outros países do leste africano que sofrem falta de comida e seca. “Quando as crianças estão desnutridas, seu estado alimentar pode induzir o pessoal da saúde a não lhes prescrever terapia antirretoviral”, explicou a médica Lucy Matu, da Elizabeth Glaser Pediatric Aids Foundation.

No Brasil, outro sócio da DNDi e com 192 milhões de habitantes, há 592.914 casos registrados de aids (que desenvolveram a doença), segundo o último relatório oficial, de julho do ano passado. Os casos de menores de cinco anos diminuíram 50% entre 1999, quando foram 954, e 2010, que teve 468. Estima-se que 0,4% das gestantes brasileiras vivam com o vírus e que 12.456 recém-nascidos estejam expostos a ele. Contudo, graças às medidas de prevenção, somente 6,8% das crianças contraíram o HIV, de acordo com o último boletim epidemiológico que apresenta dados de 2004. As autoridades afirmam que nos lugares onde foram aplicadas as medidas de prevenção a transmissão mãe-filho caiu para apenas 2% em 2009.

O programa da DNDi busca obter uma terapia ARV pediátrica de primeira linha, fácil de administrar e melhor tolerada pelas crianças do que os medicamentos atuais, que seja estável em climas tropicas, de administração e armazenagem simples e que exija, no máximo, uma ou duas doses por dia. Além disso, os remédios devem reduzir ao mínimo o risco de gerar vírus resistentes e serem adequados a bebês e crianças pequenas, com poucos requisitos de ajuste de dose conforme o peso. Por fim, a nova fórmula deve ser compatível com medicamentos contra a tuberculose, e, sobretudo, de baixo custo. A aliança DNDi já desenvolveu medicamentos para outras enfermidades esquecidas, como doença do sono, leishmaniose, mal de Chagas e malária. Envolverde/IPS

* Com colaborações de Miriam Gathigah (Nairóbi) e Ranjit Devraj (Nova Délhi).