Política Pública

Os limites do secretário-geral da ONU

Por Thalif Deen, das IPS – 

Nações Unidas, 22/2/2017 – “Conhecei seu chefe”, disse o amigo de um embaixador nigeriano que chegava de Nova York. Qual chefe?, perguntou o diplomata. “Não tenho chefe em Nova York”, acrescentou. E quando o amigo lhe explicou que se referia ao secretário-geral, então o embaixador respondeu direto: “Não é meu chefe, eu sou o chefe dele”. Na realidade, o secretário-geral é o gerente administrativo da Organização das Nações Unidas (ONU) e está obrigado a cumprir as ordens dos Estados membros, em particular em relação a questões políticas sensíveis e designações importantes.

E raramente desafia, se é que alguma vez o faz, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança com poder de veto, que são China, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e Rússia, e de onde procede a maioria dos altos cargos dentro da Secretaria-Geral da ONU, outorgados basicamente sob pressão política. O secretário-geral António Guterres, que assumiu em janeiro, foi duas vezes primeiro-ministro de Portugal (1995-2002) e é o primeiro no cargo que já foi chefe de Estado ou de governo.

E os que ocuparam o cargo de primeiro-ministro conhecem o protocolo e sabem exercer seu vasto poder político em seus países de origem, raramente recebendo ordens de outros. Entretanto, uma das primeiras nomeações de Guterres, o ex-primeiro-ministro da Autoridade Nacional Palestina, Salam Fayyad, como representante especial do secretário-geral na Líbia, foi rejeitada sem contemplações pela representante dos Estados Unidos, Nikki Haley, unicamente pelo fato de ser palestino.

“Creio que foi um erro grave”, afirmou um desanimado Guterres. “Fayyad era a pessoa certa no lugar certo no momento certo, e os prejudicados serão o povo líbio e o processo de paz na Líbia”, ressaltou. “É fundamental que todos compreendam que as pessoas que trabalham na ONU o fazem por suas capacidades pessoais. Não representam nenhum país, nem nenhum governo. São cidadãos do mundo que representam a Carta da ONU e a respeitam”, explicou, se referindo diretamente a Haley

“Existem quatro grandes obstáculos que limitam a efetividade do secretário-geral”, observou o embaixador de Bangladesh, Anwarul Chowdhury, ex-alto representante da ONU e secretário-geral adjunto, ao ser consultado pela IPS. Primeiramente, funciona o veto e os membros do Conselho de Segurança com poder de veto incidem em todas as áreas do sistema da ONU; segundo, as promessas e os compromissos realizados pelo secretário-geral quando era candidato; terceiro, a intenção de ser reeleito para um segundo mandato, e, por fim, o labirinto burocrático da ONU, explicou Chowdhury, que também ocupou um alto cargo durante o mandato de Kofi Annan (1997-2006).

O português António Guterres assumiu o cargo de secretário-geral da ONU em 1º de janeiro deste ano. Foto: Jean-Marc Ferré/ONU

 

O falecido secretário-geral Boutros Boutros-Ghali, do Egito, que enfrentou altos funcionários norte-americanos, em especial a embaixadora Madeleine Albright, foi o único que não teve o caro renovado para um segundo mandato. No Conselho de Segurança, 14 dos 15 membros votaram a favor de sua reeleição, mas Washington o vetou como castigo pela insubordinação, burlando o conceito de que a maioria – neste caso, esmagadora – decide, o que os Estados Unidos praticam por todo o mundo. O correto teria sido Washington se abster e respeitar a decisão dos outros 14 membros. Mas isso jamais.

Voltando ao atual secretário-geral, o professor adjunto da Escola de Diplomacia e Relações Internacionais da Universidade Seton Hall, Martin Edwards, apontou à IPS que “se trata de um processo de aprendizagem para Guterres, de como trabalhar com o novo governo dos Estados Unidos”. A tempestade pelo caso Fayyad se dissipará, e está claro que quem mais perde não é Guterres, mas a Casa Branca, que agora aparece como petulante, disse este especialista em organizações internacionais e economia política internacional.

Entretanto, acrescentou Edwards, o mais intrigante está nas designações do dia 14 deste mês. Foram renovados nos cargos o norte-americano Jeffrey Feltman, secretário-geral adjunto para Assuntos Políticos, e o francês Jean-Pierre Lacroix, subsecretário-geral adjunto para as Operações de Paz, que são mandatos de um ano, por isso em 2018 será preciso enfrentar Estados Unidos e França por esses cargos.

Com relação à situação de Fayyad, o porta-voz da ONU, Farhan Haq, declarou à imprensa que “realizamos amplas consultas para fazer as designações, e em função do então acordado, decidiu seguir adiante”, se referindo ao secretário-geral. Sobre Guterres ter falado diretamente com a embaixadora Haley, Haq respondeu: “Não posso qualificar todas as conversações mantidas. Como disse, fez consultas; ele e a Secretaria fizeram consultas prévias e acreditávamos que havia um acordo. Não foi assim que as coisas aconteceram”.

Também esclareceu que o Conselho de Segurança foi consultado sobre as nomeações de altos cargos que têm a ver com esse órgão ou que cumprem seu mandato. “Esse é o procedimento padrão, os 15 membros têm voz”, pontuou Haq. “Não creio que o caso Fayyad afete sua credibilidade. Mas sugere que há um problema, porque as percepções das pessoas não devem impedir que se veja as qualificações de alguém para um cargo”, acrescentou.

As pressões dos Estados membros e o favoritismo pessoal fazem com que o que propõe a Carta da ONU – “assegurar os maiores padrões de eficiência, competência e integridade (Artigo 101.3) – seja quase impossível de se conseguir”, explicou Chowdhury em entrevista realizada no ano passado, antes da eleição de Gueterres.

O costume de que todos os ocupantes de altos cargos entreguem suas cartas de renúncia quando assume um novo secretário geral é meramente figurativa, pois este sabe que um grande número desses funcionários permanecerá no cargo por terem o apoio de governos influentes. Nesse momento, o mérito e as qualificações ficam pelo caminho, lamentou Chowdhury, promotor da Resolução 1325 do Conselho de Segurança, que defende a participação igualitária das mulheres.

Infelizmente, o sistema da ONU está cheio de designações seguidas de uma intensa pressão política dos Estados membros, a título individual ou grupal. Outro aspecto negativo é designar para os altos cargos altos funcionários que procedem dos países integrantes do Conselho de Segurança com poder de veto ou de grandes contribuintes.

“Isso viola o Artigo 100 da Carta da ONU, que determina que, “no cumprimento de seus deveres, o secretário-geral e seu pessoal não devem buscar nem receber instruções de nenhum governo nem de nenhuma autoridade externa à organização”, recordou o ex-funcionário das Nações Unidas. Uma forma de evitar isso seria impedir as designações e o lobby, formal e informal, de altos cargos, dando ao secretário-geral certa flexibilidade para escolher o pessoal em função da “competência e a integridade” do candidato ou candidata.

Outro aspecto negativo do processo de seleção de cargos na ONU, para não falar apenas dos altos cargos, é a pressão dos doadores, tanto os tradicionais como os novos, para garantir a escolha de funcionários e consultores, em geral mediante recursos extraorçamentários ou outras formas de contribuição econômica.

Chowdhury afirmou que isso tem sérias consequências para os objetivos, bem como para as missões políticas e para a direção das atividades da ONU. “Nenhum secretário-geral estará disposto ou teria o apoio do resto do sistema da ONU para empreender uma reforma drástica do processo de contratação, tanto para os altos cargos como para os escalões menores. Ao final, teria que se ver com os Estados membros na Assembleia Geral para que aprovem as reformas”, opinou. Envolverde/IPS