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“Os Estados Unidos não devem apoiar a ressurreição de uma ditadura no Egito”

Emile Nakheleh. Foto: SEcurity & Defence Agenda/CC by 2.0
Emile Nakheleh. Foto: Security & Defence Agenda/CC by 2.0

Washington, Estados Unidos, 28/8/2013 – Quase mil pessoas morreram no Egito desde o dia 14 deste mês, quando as forças armadas começaram a reprimir simpatizantes da Irmandade Muçulmana que protestavam contra a derrubada do presidente Mohammad Morsi. Esse número, fornecido pelas próprias autoridades, supera em pelo menos 150 a quantidade de mortes calculadas no levante de janeiro de 2011, que acabou com o regime de Hosni Mubarak (1981-2011).

Morsi, eleito democraticamente e membro da Irmandade Muçulmana, não é visto em público desde que foi derrubado no dia 3 de julho, enquanto Mubarak saiu da prisão e se encontra detido domiciliarmente à espera de julgamento. A maioria da mídia egípcia adotou a linguagem dos militares e qualifica os membros da Irmandade Muçulmana de “terroristas” que tentam destruir o país.

Em entrevista à IPS, o norte-americano Emile Nakhleh, especialista em Oriente Médio e ex-diretor do Programa de Análise Estratégica da Agência Central de Inteligência (CIA), explicou porque a repressão não deterá a Irmandade Muçulmana, uma força política e cultural com profundas raízes na sociedade egípcia. Pelo contrário, adverte que a repressão levará seus militantes a apelarem para a violência como ferramenta política.

Nakhele explicou que os Estados Unidos procuram cobrir seus próprios interesses no Egito, mas estes “não necessariamente coincidem com os regimes repressivos ditatoriais”. E afirmou que, “no longo prazo, governos eleitos democraticamente serão mais estáveis do que esses regimes autocráticos”.

IPS: O senhor acredita que os Estados Unidos devem suspender sua ajuda ao Egito?

EMILE NAKHELEH: A ajuda deve ser suspensa. Nós (os Estados Unidos) apoiamos a expulsão de Mubarak, por isso agora não podemos apoiar a ressurreição de uma ditadura militar. A suspensão da ajuda em si não é suficiente. Deve estar acompanhada de um diálogo de alto nível sobre o futuro do Egito segundo as ideias do levante de 2011. No Bahrein, devemos deixar bem claro à dinastia Al Khalifa que a repressão e a exclusão da maioria xiita não podem continuar.

IPS: Quanto os Estados Unidos necessitam do Egito e quanto o Egito necessita, especialmente do exército, dos Estados Unidos?

EN: Não esqueça que a maior parte da ajuda financeira que Cairo recebe de Washington é gasta na compra de armas norte-americanas. Mas essa não é a principal razão da assistência. A ajuda militar ao Egito tem sido uma ferramenta dos Estados Unidos para procurar seus interesses, que são manter o tratado de paz com Israel, ter prioridade sobre o canal de Suez, e voar livremente sobre território egípcio, além de obter ajuda na luta contra o terrorismo, especialmente depois dos atentados de 11 de setembro de 2011, em Nova York e Washington. Há outro interesse paralelo: aproveitar a influência do Egito nos palestinos e no Hamás (Movimento de Resistência Islâmica) e sua capacidade de pressionar para concretizar negociações. Os principais interlocutores do Hamás nos últimos anos foram figuras da inteligência egípcia, como Omar Suleiman.

IPS: Então a ajuda deve ser suspensa. E depois?

EN: É um caminho de mão dupla. Temos que considerar nossos interesses nacionais, mas preservar o tratado de paz também é um interesse do Egito. Nem mesmo Morsi tocaria nele. Quando apareceu o terrorismo no Sinai, pediu ajuda aos israelenses para combatê-lo. O discurso que o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, fez em 2009 no Cairo foi importante porque, ao menos retoricamente, reconhecia que o mundo islâmico é diverso e que há uma diferença entre a maioria dominante e uma minoria radical. Temos que incluir os muçulmanos da maioria. Ele acreditava nisso e esteve interessado em incluir os partidos majoritários que foram eleitos em um processo pacífico e imparcial. É por isso que aceitou trabalhar com a Irmandade Muçulmana e com o Partido da Liberdade e da Justiça depois de eleito de forma livre e justa.

IPS: Um artigo publicado dia 10 de julho no jornal The New York Times sugeria que a derrubada de Morsi já estava planejada há algum tempo. Qual sua opinião a respeito?

EN: Foi o próprio Morsi quem designou Abdel Fatah al Sisi, e este logo se voltou contra ele. Elementos do antigo regime e dos chamados liberais egípcios, que nunca aceitaram os resultados eleitorais, fizeram um complô desde o primeiro dia para tirar Morsi. Isso não quer dizer que Morsi não cometeu erros. Renegou a maioria de suas promessas. Prometera incluir as mulheres e as minorias no processo de tomada de decisões, mas não o fez. A velha guarda e os militares nunca o perdoaram por ter removido o marechal de campo Hussein Tantawi. E foi o próprio Morsi que trouxe Sisi. Este fingia apoiá-lo, mas não era verdade. Existe uma “aliança ímpia” entre os militares, o antigo regime e os chamados liberais. É também um fato que a revolução expulsou Mubarak, mas não desmantelou o regime. Depois que Morsi chegou ao poder, seus ministros e outros funcionários começaram a impulsionar rapidamente seu programa. Logo começaram a se formar filas nas ruas quando o combustível começou a escassear. E, por alguma razão, as filas desapareceram logo que Morsi foi derrubado. Então, Sisi chamou as pessoas a saírem às ruas e para dar a ele um “mandato” para agir pelos interesses nacionais e expulsar Morsi. Em janeiro de 2011, as pessoas foram às ruas para expulsar Mubarak, e em 2013, a pedido de Sasi, tiraram Morsi. Muito em breve descobrirão que esta é uma ditadura militar e vão se levantar novamente.

IPS: A Arábia Saudita chamou explicitamente pelo apoio ao atual governo egípcio para derrotar a Irmandade Muçulmana. Que efeito tem isso nas relações entre Washington e Riad?

EN: Os sauditas têm horror à Irmandade Muçulmana como movimento de reforma. Agora a Arábia Saudita está em um jogo perigoso. Os autocratas árabes tentam silenciar a democracia porque não gostam destes movimentos revolucionários e têm medo de que surjam em seus próprios países. É por isso que os sauditas enviaram tropas ao Bahrein para controlar um levante xiita. Como ninguém acreditou nesse argumento, disseram que lutavam contra o terrorismo, e dizem que estão fazendo o mesmo no Egito. Mas, não se trata da Irmandade Muçulmana no Egito ou dos xiitas no Bahrein. Trata-se de movimentos reformistas e de oposição a regimes repressivos.

IPS: Quais opções tem Obama neste momento?

EN: Obama teve que enfrentar uma nova realidade com a Primavera Árabe. Decidiu apoiar os movimentos pró-democráticos e é por isso que apoiou a queda de ditadores na Tunísia, Líbia e Egito. Calou-se um pouco sobre o Bahrein, ainda que seu embaixador nesse país tenha se expressado a respeito. Creio que os Estados Unidos têm de conseguir um claro equilíbrio entre a segurança nacional e nossos valores democráticos, e deve explicar esse equilíbrio ao povo norte-americano e aos povos da região de forma clara e inequívoca. Ainda temos que procurar nossos interesses, mas estes não necessariamente coincidem com os de regimes ditatoriais repressivos. No longo prazo, os governos democraticamente eleitos, não importando o quanto desordenados forem, serão mais estáveis. (Envolverde/IPS)