Opinião

A democracia em risco

Grito dos Excluídos foi o lema de uma manifestação no dia 7 deste mês na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, contra o presidente Michel Temer, os políticos e a corrupção. Foto: Lula Marques/AGPT
Grito dos Excluídos foi o lema de uma manifestação no dia 7 deste mês na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, contra o presidente Michel Temer, os políticos e a corrupção. Foto: Lula Marques/AGPT

Por Mario Osava, da IPS – 

Rio de Janeiro, Brasil, 12/09/2016 – A democracia vive um ciclo de decaída mundial, depois de algumas décadas de auge, em que superou as ditaduras no sul da Europa e na América Latina e avançou na Ásia. Com o passar do tempo, poderá estar condenada a desaparecer em sua forma atual.Mas o Brasil não é um exemplo das ameaças a esse sistema político, apesar do trauma da destituição de Dilma Rousseff, chamada de “golpe de Estado” pelos defensores da agora ex-presidente, segundo o sociólogo Elimar do Nascimento, professor da Universidade de Brasília.

“Não houve golpe, nem a democracia está sob risco no curto prazo no Brasil, graças à atuação da população e dos militares”, o que existe são pressões a favor de uma reforma política que limite a proliferação de partidos e melhore a representação política, afirmou Nascimento. A destituição de Dilma por um mecanismo constitucional “refletiu claramente sua incapacidade de governar a sociedade brasileira em um mundo globalizado, de múltiplos interesses corporativistas que se apropriam do Estado”, deficiência comum à esquerda latino-americana, acrescentou o professor.

“O enfraquecimento da esquerda” é um sintoma dessa época em que grandes grupos econômicos conquistam crescente poder político, em detrimento do “espaço público” nos governos e organismos internacionais, acentuando desigualdades que ameaçam a sobrevivência da democracia, apontou Nascimento à IPS. Outro fator de risco é o “aumento do terrorismo, que só se enfrenta fortalecendo aparatos de segurança, de controle e proibições. Sem as utopias, os jovens são atraídos por atos radicais e o terrorismo solitário estende sua ação ao espaço global”, acrescentou.

Mas é na crise ambiental do planeta como verdugo da democracia que Nascimento, diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, concentra suas mais recentes reflexões. Os governos atuam no âmbito nacional e no curto prazo, dentro de mandatos de quatro a seis anos, insuficientes para medidas eficientes em questões ecológicas, que demandam décadas de ações globais.

“Com a mudança climática, essa crise tende a se agravar rapidamente e acabará exigindo medidas autoritárias, inclusive porque em sistemas complexos como o clima a falha em alguns requerimentos pode acelerar o colapso”, explicou Nascimento, também membro do Instituto Internacional de Pesquisa Política de Civilização, com sede na França e dedicado ao debate de desafios da humanidade.

 São Paulo, que liderou os protestos contra Dilma Rousseff, foi cenário de maciças manifestações contra o presidente Michel Temer em setembro. Foto: Paulo Pinto/AGPT

São Paulo, que liderou os protestos contra Dilma Rousseff, foi cenário de maciças manifestações contra o presidente Michel Temer em setembro. Foto: Paulo Pinto/AGPT

Entre liberdade e sobrevivência não haverá escolha, ressaltou Nascimento. Em sua avaliação, “os indícios de retrocesso na vigência democrática atual recordam as vésperas das guerras mundiais”. Depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), houve um ciclo de expansão, como havia ocorrido no século 19 na Europa e na América do Norte. Agora o que se vê é uma forte tendência mundial de concentração da riqueza, o avanço da extrema direita na Europa e as fragilidades da esquerda, especialmente na América Latina, com o esgotamento do ciclo de governos considerados progressistas.

“Têm razão os que apontam uma crise da democracia em escala mundial, refletida principalmente no crescente descrédito popular no sistema de representação, ineficiente e em desacordo com a complexidade das sociedades e dos meios de comunicação existentes”, corroborou o historiador Daniel Aarão Reis. É inevitável para um sistema consolidado, “em um contexto social e histórico totalmente distinto do nosso”, que se converterá em “relíquia da História” se não for renovado, admitiu à IPS este professor da Universidade Federal Fluminense, de Niterói.

Sua atualização “pode demorar décadas, devido aos variados interesses envolvidos, mas é cada dia mais evidente a incapacidade do sistema democrático atual para lidar com os problemas sociais, culturais, econômicos e políticos, e solucioná-los”, destacou Reis. Em sua opinião, no Brasil há dificuldades adicionais pelo “escasso enraizamento dos valores democráticos na sociedade e nas principais correntes políticas, sejam de esquerda ou de direita”. Fixá-los exige um processo que demora “décadas, até mesmo gerações”.

O atual período democrático brasileiro tem apenas 31 anos, já que o país viveu sob ditadura militar entre 1964 e 1985. Muitos outros países latino-americanos amargaram regimes autoritários, em sua maioria militares e apoiados por forças civis conservadoras, entre as décadas de 1960 e 1980.Enfim, é natural que a onda de redemocratização que se seguiu favorecesse a esquerda, identificada com a liberdade, além da busca pela igualdade.

Inclusive sobreviventes de guerrilhas que desafiaram ditaduras militares, como a própria Dilma Rousseff, chegaram ao poder pela via eleitoral, apresentados como campeões da resistência democrática, embora seus movimentos armados propusessem um regime comunista, também ditatorial.

Mais do que por valores, a democracia no Brasil se sustenta “porque uma correlação equilibrada de forças impede que uma sufoque as demais, um equilíbrio que ficou visível na longa transição democrática e tomou forma na Constituição de 1988. Enquanto esse quadro se mantiver, a democracia se sustentará, ainda que sem bases muito sólidas”, opinou Reis.

O descontentamento da população, entretanto, se expressa nas ruas desde 2013 e em diversas pesquisas. A batalha pela destituição de Dilma, desde 2015, dirigiu as manifestações à rejeição ou à defesa da então presidente, mas não apagou os vários matizes dos protestos.A corrupção, principal alvo dos milhões de opositores que saíram às ruas, estigmatizou principalmente o Partido dos Trabalhadores (PT), de Dilma (2011-2016) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), mas há a consciência de que essa é uma chaga generalizada no sistema político brasileiro.

Apenas quatro dias após a destituição de Dilma, começaram as manifestações em massa rejeitando o conservador Michel Temer. Dezenas de milhares o fizeram em São Paulo, nos dias 4 e 7 deste mês, e outros milhares no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras.

Um vice-presidente assumindo a condição de titular, como Temer, tende a extremar o sentimento, já disseminado no mundo, da escassa representatividade de governantes e políticos, ao não se eleger por votação popular, embora tenha sido parte da chapa de Dilma nas eleições de 2010 e 2014. Além disso, sua presença impede a realização de novas eleições que seriam a forma mais democrática da sociedade decidir seu próprio destino. Envolverde/IPS