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O serviço da dívida ou “a serviço da dívida”?

Bancos preferem emprestar para governos porque o risco é menor. Não é mais assim. Agora tem uma quantidade imensa de títulos públicos que geram dinheiro do nada e que não podem ser pagos.

Todos os meses nos relatórios da administração monetária e cambial dos países tem uma alínea que mostra o “serviço da dívida”, ou seja, quanto se está pagando ou reservando para a amortização de juros da dívida que cada país tem lastreada em títulos públicos. É um dos negócios mais rentáveis do mundo para instituições financeiras e, até bem pouco tempo, um dos mais seguros. Os juros pagos pelos governos para a emissão de títulos do Tesouro não são os mais altos do mercado. Perto do que um brasileiro paga para utilizar o cheque especial e o cartão de crédito, não chega nem a fazer cosquinhas. Mas os governos devem muito e qualquer juro aplicado sobre montantes de bilhões, muitos bilhões de dinheiros, sejam dólares, euros ou reais, significa ter de pagar aos bancos milhões, muitos milhões de dinheiros, sem que nenhum parafuso tenha sido produzido ou apertado.

Já houve ministros da Fazenda que declararam em alto e bom som que “dívida não se paga, rola-se”, e é isto que vem sendo feito há décadas por governos de todo o mundo. Nos anos 1980-1990, os países do chamado terceiro mundo, hoje considerados “emergentes”, enfrentaram suas “crises da dívida”, quando as taxas de juros para a venda de títulos do governo chegaram a extremos e os países não conseguiam mais pagar. Foi um tempo de moratórias e calotes. A receita dos credores, os grandes bancos internacionais representados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), foi um tremendo aperto cambial e fiscal que jogou muita gente na recessão. Brasil, México, Coreia do Sul e até a Rússia amargaram crises. No Brasil, o então presidente Sarney decretou a moratória e seu então ministro da Fazenda, Dilson Funaro, deu início a uma interminável série de planos econômicos milagrosos, com o Plano Cruzado.

Bom, mas isto é história. E, apesar de parecer que nada se aprendeu com essa história, a verdade é que os bancos internacionais aprenderam muito. A principal lição é que vale mais a pena emprestar para governos, que podem emitir dinheiro e aumentar impostos para garantir pagamento, do que para empresas que podem não conseguir realizar seus negócios e, assim, pagar suas dívidas. Ou seja, o risco que os governos ofereciam eram baixos e, portanto, todo o crédito fácil do mundo deveria ser direcionado para os títulos dos tesouros ao redor do mundo. E o dinheiro fácil seduziu muita gente importante de países que sempre torceram os narizes para os devedores da América Latina ou da periferia do mundo.

Então, o que aconteceu? Os títulos dos Tesouros começaram a vencer em quantidade cada vez maior, ao invés de bilhões de dinheiros, passaram a ser trilhões de dinheiros. Para pagar, os governos emitem mais títulos e aumentam a dívida. É mais ou menos como usar um cartão de crédito para pagar a fatura de outro cartão de crédito. Isto feito em uma ciranda sem fim, até que os bancos perceberam que alguns governos não tinham mais como arrancar o que deviam por meio de impostos sobre os seus cidadãos. Parece simples. Uma simples declaração do tipo “devo e não nego, pago quando puder” poderia ser a solução. Mas, e os vizinhos, o que iam pensar?

Todo mundo morre de medo só em pensar que um banco vai quebrar, vide a crise de 2008, quando alguns vários trilhões de dinheiros foram injetados no sistema financeiro global para evitar que as velhinhas ficassem sem suas pensões e que os banqueiros perdessem seus bônus. Agora é a mesma coisa. Os governos gastaram o que tinham e o que não tinham para salvar os bancos. O resultado é que rasparam os cofres públicos até as últimas moedas e não têm dinheiro para saldar as dívidas que realmente assumiram. O sistema financeiro não se importa se foi o beneficiário da ajuda em 2008. Para ele, só importa que títulos estão vencendo e precisam ser pagos. É mais ou menos como se um cidadão se vestisse de Papai Noel, fosse às compras e gastasse tudo o que tivesse de limite em seus cartões de crédito para dar presentes a crianças pobres. No dia do vencimento da fatura do cartão, o banco vai querer receber, não importa com o que o Papai Noel gastou o dinheiro.

Bom, parece que o Papai Noel dos bancos quebrou. Os pobrezinhos precisavam de presentes em 2008 e receberam muitos. Os governos não têm como honrar esse cartão de crédito e precisam assumir isso de forma muito transparente. A grande crise global do sistema financeiro não vai deixar de existir com o pagamento dos juros das dívidas dos países. Pelo contrário, vai apenas inchar a ciranda financeira com dinheiro sem lastro e empobrecer os países que seriam capazes de produzir riquezas reais.

* Dal Marcondes é jornalista e já foi editor de economia e finanças de diversos grandes meios de comunicação.