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Museu a céu aberto vive e cresce na favela

Os muros contam a história e a vida da favela do Morro do Cantagalo. Foto: Fabiana Frayssinet

Rio de Janeiro, Brasil, 19/4/2012 – Desde a história, a vida cotidiana e a arte popular até as paisagens mais belas desta cidade. Tudo é parte do museu “vivo” criado por líderes comunitários de uma favela para mostrar sua memória, seu patrimônio cultural e também suas chagas. “Certa época, a única luz que havia na favela era a natural. Por isto, os moradores se reuniam para conversar na rua sob o luar”, contou Rita de Cássia Santos Pinto, ao responder às perguntas da IPS, sentada diante do mural que integra o circuito das “casas-tela”.

Rita de Cássia é jornalista e diz que, como tal, não gosta de ser entrevistada. Contudo, quando se trata da história de sua comunidade não lhe faltam entusiasmo nem palavras. Percorrendo cada canto do Morro do Cantagalo, que entre vales e ladeiras de morros integra um complexo territorial junto às favelas Pavão e Pavãozinho, as paredes e as casas também começam a falar.

Enquanto um mural conta a história do samba, que nasceu precisamente nas favelas, outro relata a época da repressão da ditadura militar (1964-1985), com o fundo das típicas moradias sem reboque desses locais. São mais de 20 grafites feitos por artistas do Cantagalo ou de outros lugares do Rio de Janeiro, que escrevem com formas e cores a história comunitária. As casas-tela são parte de um circuito turístico pago que inclui, a pedido dos interessados, desde oficina de confecção e voo de asa-delta, aulas de cavaquinho, até visita a lojas de arte popular e restaurantes vizinhos.

“Queremos acabar com a barreira dos museus federais que só têm exposições de artistas famosos”, disse Rita de Cássia, que além de jornalista é guia turística, diretora social, “curadora de memória” e uma das líderes comunitárias fundadoras do Museu da Favela (MUF). Este primeiro museu territorial vivo busca recuperar e valorizar a identidade de seus 20 mil habitantes a partir de seus próprios relatos e integrá-los a essa realidade até agora distante.

Do Nordeste para a favela

Um dos painéis expostos na sede do MUF, que também integram uma exposição itinerante por outros museus tradicionais do Brasil, conta a história dos pais de Rita de Cássia, hoje octogenários, por sua própria boca. Feliciano da Silva Pinto, imigrante nordestino da Bahia, que trabalhava como eletricista na cidade, se apaixonou por Eunice Santos quando todos os dias a via descer o morro carregando água em uma lata que equilibrava sobre a cabeça. “Para conquistá-la, começou a lhe presentear com água”, conta a jornalista, em meio a risadas.

Uma das muitas narrativas sobre os imigrantes pobres que povoaram este conjunto de modestíssimas casas, que hoje chegam a 5.300, conectadas por um insondável labirinto de becos e escadarias, que parecem infinitas para o visitante não acostumado a chegar ao topo do morro. Hoje, um elevador, construído dentro do Programa de Aceleração do Crescimento, do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), facilita a subida. São mais de 60 metros, equivalentes a um edifício de 23 andares, que antes os moradores da favela faziam a pé.

“Toda memória é interessante para que fique registrada”, destacou Rita de Cássia que em seu trabalho, por meio de relatos orais, tenta reconstruir a origem da favela “para dar voz a quem nunca a teve”, enfatizou. A história deste trio de bairros cruza com a da origem das grandes cidades do Brasil. Desde os escravos fugitivos que se escondiam no maciço do Cantagalo, até as primeiras construções de ranchos na primeira década do Século 20, onde viviam os migrantes internos em busca de trabalho.

As favelas cresceram encravadas em meio a bairros residenciais que são parte dos destinos culturais do Rio de Janeiro, como Ipanema e Copacabana, formados por grandes casas ou prédios construídos, muitas vezes, por esses migrantes pobres e analfabetos, como os pais de Márcia de Souza, a diretora cultural do MUF. Márcia descreve outra iniciativa do museu vivo, que é a escolha anual de 12 “mulheres guerreiras” da favela.

São as mulheres que “venceram na vida, enfrentaram dificuldades, como violência, educar os filhos, e que, mesmo com algum filho preso por tráfico de drogas conseguiram salvar o resto da família e mantê-la longe da violência e das drogas”, explicou à IPS. As mulheres recebem um prêmio de valor simbólico, o da “valorização da memória”. Sua vida é reconstruída por meio de fotografias, objetos pessoais e relatos.

É tempo de paz

Esse conjunto de favelas era uma das zonas mais violentas do sul do Rio de Janeiro, com tiroteios diários entre grupos de traficantes, até que, há três anos, chegaram as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), como parte do plano de presença da força pública nestes assentamentos, acompanhadas por melhorias na infraestrutura e iniciativas sociais.

O MUF é uma organização não governamental de caráter comunitário criada em 2008, antes da instalação das UPP, que enfrenta muitos desafios, segundo seus fundadores. Agora, as queixas são de falta de financiamento público para a iniciativa, o que levou à busca por interessados em investir no que é chamado de “um imaginário de futuro”. Seus integrantes imaginam esse futuro como um conjunto de galerias a céu aberto, “cujos acionistas sejam os próprios moradores, fornecendo seus imóveis, saberes e o que sabem fazer”.

A ideia é transformar Pavão, Pavãozinho e Cantagalo em um “monumento turístico carioca” sobre a história da formação das favelas, das origens culturais do samba, da cultura do migrante nordestino, do negro, das artes visuais e da dança. Com este espírito, e como parte das atividades atuais desse museu vivo, arquitetos e estudantes de arquitetura de outros Estados brasileiros e da Argentina e França participam da iniciativa.

Esse coletivo fará uma intervenção urbana para melhorar alguns lugares. Trata-se de soluções que devem ser criativas e com investimento de poucos recursos, como a instalação de uma tela gigante de cinema comunitário, acima do terraço do MUF que, na realidade, é um grande depósito de água. Envolverde/IPS