Arquivo

Viver ao relento já não é exceção na Espanha

Pessoas sem teto compartilham experiências perto de um albergue em Málaga, Espanha. Foto: Inés Benítez/IPS

Málaga, Espanha, 28/1/2013 – “Durmo ali”, diz Fernando, apontando para um lugar encharcado debaixo de uma ponte próxima. Português, de 62 anos, está há 15 na Espanha e é parte do crescente coletivo de pessoas sem teto neste país castigado por uma inclemente crise econômica e financeira. Em 2008, havia 11.844 pessoas que careciam de moradia na Espanha e, em 2012, esse número subiu para 22.238, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), que considera as que são usuárias de centros assistenciais de alojamento, por isso não se descarta que o número seja maior.

Fernando*, com barba longa, caminha devagar arrastando um carrinho vermelho que guarda duas cartas de vinho e uma garrafa de água quase vazia. Não quer viver em um albergue embora tenha problema nas pernas e faça frio. Divorciado e com filhos maiores de idade, pede esmola aos clientes de dois grandes centros comerciais desta cidade, onde as histórias se repetem, como nos demais centros urbanos da Espanha.

A maioria procura em algum momento um albergue ou restaurante social, mas há uma pequena porcentagem que escolhe ficar ao relento e não aceita ajuda, explica a assistente social Toñi Martín, membro da equipe da Unidade de Rua, um serviço municipal que atende na via pública pessoas sem teto. Os motivos pelos quais acabam na rua são inúmeros. Cerca de 45% citam a perda do emprego, enquanto 26% dizem que não conseguem mais pagar para morar, 20,9% se refere à separação do casal e 12,1% afirmam que foram despejados, segundo a pesquisa divulgada em dezembro pelo INE.

“A crise não afetou as pessoas sem teto, mas derrubou os que estavam na corda bamba”, disse à IPS a diretora do Centro de Acolhida Municipal, Rosa Martínez. São as pessoas que antes podiam resistir que viram se romper sua rede de apoio familiar pelos embates da crise. Martínez, que dirige esse centro de 108 lugares, conta que nos últimos anos cresceu o número de sem-teto e seu perfil mudou. “Agora se vê famílias inteiras, gente que não pode pagar aluguel”, afirmou.

“Nota-se um aumento de famílias, em sua maioria monoparentais (mães e filhos) que pedem algum tipo de ajuda de nossa rede”, revela um informe da Porta Única, instituição pública que coordena em Málaga a atenção às pessoas sem teto por meio de uma diversificada rede de abrigos. O desemprego na Espanha afeta 25,02% da população economicamente ativa e a metade de seus jovens, e este mês organismos internacionais prognosticaram que em 2013 o país terá uma situação econômica ainda pior do que no ano passado.

Para enfrentar a crise, o governo do direitista Mariano Rajoy aplicou duros cortes orçamentários, mas é difícil desenhar um retrato nacional de como estes repercutem nos serviços assistenciais para pessoas sem teto. Como a execução dos fundos ocorre por meio de convênios com as diferentes municipalidades do país, em alguns lugares “existe o compromisso firme das administrações e em outros há dificuldades”, explicaram à IPS fontes da Cáritas, entidade da Igreja Católica referência na atenção à população socialmente excluída.

“Em Málaga não haverá redução de fundos este ano”, afirma Martínez. O INE indica que quase 46% dos sem-teto são estrangeiros, como Hans, um alemão corpulento que balbucia algumas palavras em espanhol. Também é o caso de um latino-americano que prefere não dar seu nome e procura enterrar um histórico de álcool e acusação de maus tratos à sua companheira que o lançaram, aos 51 anos, no albergue onde dorme. E isto apesar de ter diploma universitário e ter exercido sua profissão por algum tempo.

Dados do INE também mostram que 11,8% das pessoas sem teto têm estudo superior e 60,3% possuem o ensino secundário. Muitos estrangeiros sem ter onde morar, sobretudo originários do Marrocos, retornam aos seus países devido à precária situação trabalhista, disse à IPS a trabalhadora social Paula de Santos, do Centro de Acolhida Municipal. “Não encontram trabalho como antes na coleta de azeitona e morango”, explicou. Uma boa porcentagem é de pessoas com problemas de drogas e álcool, mas também há outras sem vícios, desempregados por longo tempo, que não encontram trabalho e esgotaram os auxílios-desemprego, conta Martín enquanto percorre as ruas com um furgãozinho branco. Com ela, diz Pepe, seu motorista, buscam e atendem os que chamam carinhosamente de “nossas crianças”.

Foi Martín que convenceu Dolores, de 61 anos, a ir ao centro de acolhida onde atualmente dorme e faz três refeições por dia. Assim, deixou para trás seu companheiro que a maltratava e com o qual compartilhava o vício do álcool. “Me banho sozinha, apoiando na torneira porque fico tonta”, contou, orgulhosa, à IPS, com um sorriso que ilumina seu rosto marcado pelas rugas. Dos sem-teto, 32%  perderam sua casa em 2012, enquanto 44,5% estavam há mais de três sem ter onde morar, segundo o INE. “Há pessoas que fazem do viver na rua uma situação crônica, vão subsistindo e têm dificuldade para mudar a forma de vida”, disse Martínez.

Sobre estas pessoas, Martín ressaltou que “tentamos, ao menos, que mantenham um mínimo de higiene”. Os que perderam seus tetos mais recentemente são os que mais usam os serviços assistenciais, disse a funcionária. Jesús cumpriu uma condenação de dez anos e contou à IPS, diante do albergue onde dorme, que está na rua desde que ficou em liberdade, dia 27 de dezembro. O caráter itinerante destas pessoas também joga contra elas porque ter um domicílio é um requisito para receber algumas ajudas. “Em certas ocasiões, desejamos que seu domicílio seja a sede do centro de acolhida”, enfatizou Santos. Envolverde/IPS

* Várias fontes desta reportagem falaram à IPS omitindo seus sobrenomes.