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Uma crise sanitária se esconde dentro dos lares indianos

Kehmli Devi inclina-se sobre a estufa à lenha em sua casa no norte da Índia. Foto: Athar Parvaiz/IPS
Kehmli Devi inclina-se sobre a estufa à lenha em sua casa no norte da Índia. Foto: Athar Parvaiz/IPS

 

Srinagar, Índia, 12/3/2015 – Kehmli Devi, uma mulher da aldeia de Chachadeth, no Estado indiano de Uttarakhand, há anos prepara a refeição de sua família em um fogão à lenha. Ela é uma das milhões de mulheres na Índia que não podem pagar pelo gás e dependem da lenha como fonte de combustível gratuita para cozinhar.

“Demoramos de cinco a seis horas para conseguir a lenha necessária para cada dia. Temos que entrar bem fundo nas florestas para encontrá-la. Mas não nos importamos, porque é gratuita”, contou à IPS. Devi não pode se dar ao luxo de comprar gás engarrafado, mesmo a preço subsidiado, porque sua família ganha apenas US$ 57 por mês, menos de US$ 2 por dia.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de três bilhões de pessoas cozinham e mantêm calefação em suas casas com fogueiras abertas e fogões de barro, que consomem carvão e biomassa, ou seja, madeira, esterco e resíduos de cultivos. A queima indevida desses combustíveis em espaços fechados libera uma série de substâncias químicas de risco, incluídos os chamados contaminantes perigosos do ar, cinzas e compostos orgânicos voláteis.

A OMS calcula que 4,3 milhões de pessoas morrem por ano devido a doenças que podem ser atribuídas à contaminação do ar em lugares fechados, inclusive de enfermidades respiratórias, como pneumonia, e também de câncer de pulmão e acidentes cardiovasculares.

Outros estudos demonstram que a contaminação do ar interior, em particular nas casas mal ventiladas, está vinculada a complicações na gravidez e afeta negativamente meninos e meninas, que são mais propensos às doenças respiratórias do que os adultos. Em geral, mulheres e crianças correm um risco muito maior de sofrer as consequências da contaminação interna, já que passam mais horas em casa.

Um enorme número de lares na Índia continua dependendo dos combustíveis tradicionais para cozinhar e para iluminação e calefação. O censo de 2011 revela que 75 milhões de famílias rurais, ou 45% do total, carecem de eletricidade, enquanto 142 milhões, ou 85% do total, dependem completamente do combustível de biomassa para cozinhar.

Apesar de os sucessivos governos subsidiarem, desde 1985, os combustíveis mais limpos, como o gás, para reduzir seu preço, milhões de famílias ainda continuam sem poder adquiri-los e optam por substâncias mais tradicionais e danosas. Alguns estudos dizem que o consumo de combustíveis tradicionais na Índia chega a 135 milhões de toneladas equivalentes de petróleo, mais do que a energia consumida pela Austrália em 2013.

Cozinhar com combustível limpo é um sonho distante para Zeba Begam, residente no Estado indiano de Jammu e Cachemira. Foto: Athar Parvaiz/IPS
Cozinhar com combustível limpo é um sonho distante para Zeba Begam, residente no Estado indiano de Jammu e Cachemira. Foto: Athar Parvaiz/IPS

 

Os especialistas alertam para a necessidade de se reduzir drasticamente esses números, para melhorar as vidas de milhões de pessoas e também para cumprir as metas internacionais de redução da pobreza e da sustentabilidade. Por exemplo, a contaminação do ar de interiores está vinculada aos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), a maior iniciativa da ONU, cujo prazo vence no final deste ano.

Segundo a OMS, abordar a questão dos combustíveis domésticos danosos automaticamente avançará no cumprimento do quarto ODM, que pretende reduzir a mortalidade infantil em dois terços antes do final do ano, já que as crianças são mais propensas a sofrer enfermidades causadas pela contaminação interior.

Do mesmo modo, as mulheres e as crianças passam horas coletando lenha, tarefa que consome grande parte do dia e de sua energia. A redução dessa carga aproximaria a Índia da meta da igualdade de gênero e de empoderamento das mulheres. O menor tempo dedicado à coleta de combustível também libera horas para a educação ou o emprego, os quais contribuem com o primeiro ODM, a erradicação da pobreza extrema e da fome.

Em 2005, o Informe sobre o Desenvolvimento Mundial, do Banco Mundial, calculou o custo econômico e sanitário da coleta e do consumo de lenha em US$ 6 bilhões, apenas na Índia, o que representa um enorme desperdício em um país com índice de pobreza de 21,9% de seus 1,2 bilhão de habitantes.

Veerabhadran Ramanathan, diretor do Centro de Ciências da Atmosfera, da Instituição Scripps de Oceanografia, na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, destacou à IPS que a energia limpa, em particular para os pobres, deve estar na agenda das próximas negociações sobre o clima, que acontecerão em dezembro na França, quando os governantes do mundo deverão acordar objetivos vinculantes sobre as emissões de carbono para a próxima década.

Ramanathan argumentou que é responsabilidade dos ricos, os quais chamou de “os quatro bilhões acima” (4BA), ajudar os “três bilhões de baixo” (3BB) a aumentarem o consumo de energias renováveis e reduzir o de combustíveis fósseis. “Para evitar mudanças climáticas insustentáveis nas próximas décadas, a descarbonização da economia dos 4BA, bem com a provisão de acesso à energia moderna para os 3BB, deve começar agora”, afirmou na Cúpula sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada em fevereiro em Nova Délhi.

Suas palavras refletem inúmeras iniciativas internacionais para reduzir as emissões procedentes dos combustíveis domésticos danosos, como a Aliança Mundial para os Fogões Limpos, para a qual a transição para fogões ecológicos poderia reduzir as emissões dos combustíveis de madeira em 17%.

Com base em um estudo realizado por especialistas da Universidade de Yale e pela Universidade Nacional Autônoma do México, Radha Mutthiah, a diretora da Aliança Mundial, disse e janeiro que sua organização “apontará as zonas onde a tecnologia de cocção limpa pode ter maior impacto, não só na melhora dos efeitos sobre o clima, mas também na saúde de milhões de pessoas que vivem nos pontos críticos”.

Esses pontos críticos são definidos como lugares onde a lenha é coletada a um ritmo constante, com mais de 50% não renovável. Ali vivem 275 milhões de pessoas, das quais 60% residem na Ásia meridional. Concluiu-se que Índia e China têm as maiores emissões produzidas pelo combustível de madeira. Isso deve servir para chamar atenção para que as autoridades políticas e os legisladores tomem medidas, segundo especialistas. Envolverde/IPS