Internacional

Um laboratório vivo de boa convivência com a seca no Brasil

Abel Manto mostra em sua propriedade um tanque de água de chuva e os feijões que planta apesar dos anos de persistente seca. Foto: Mario Osava/IPS
Abel Manto mostra em sua propriedade um tanque de água de chuva e os feijões que planta apesar dos anos de persistente seca. Foto: Mario Osava/IPS

 

Riachão do Jacuípe, Brasil, 3/7/2013 – A primeira surpresa ao chegar à propriedade de Abel Manto é o verde da vegetação, que contrasta com os arredores castigados pela escassez de chuva. Seus feijões e suas árvores frutíferas parecem ignorar a insistente seca que atinge o interior semiárido do nordeste brasileiro, a pior em 50 anos. Uma “represa subterrânea”, feita com folhas de plástico estendidas sob o solo para conter a água mantém a terra úmida por longo tempo, permitindo a Abel plantar feijões em cerca de mil metros quadrados em plena seca.

Várias técnicas de coleta e armazenagem de água pluvial, como charcos, cisternas, “pequenas represas sucessivas” e “calçadão de concreto”, armazenam, quando chove normalmente, quase 1,9 milhão de litros de água por ano, em sua propriedade de dez hectares, segundo Abel. Para beber e cozinhar, ele, sua mulher e a filha pequena consomem 277 mil litros. O restante é destinado a pequenos animais domésticos e para irrigar as plantações. No entanto, este ano a seca reduziu suas reservas hídricas e o forçou a “escolher prioridades”. Abel optou por salvar cultivos que exigem menos água, como os de maracujá e melancia.

Outra surpresa é a quantidade de conhecimentos acumulados por Abel, que se define como “agricultor familiar em transição para a agroecologia”. Aos 40 anos de idade, ficou conhecido como inventor de soluções para conviver com as periódicas secas do semiárido brasileiro. Seu grande êxito é a bomba hidráulica que denominou de “Malhação”, por ser manual e exigir algum esforço físico. Trata-se de um aparelho de 80 centímetros de altura e componentes baratos, como tubos e garrafas de plástico, bolas de vidro e a parte de plástico de canetas esferográficas.

Cada bomba custa R$ 116 (US$ 53), incluindo as tubulações para irrigação por gotejamento, e 70% mais se o usuário preferir uma manivela metálica para operá-la com menos esforço. Neste último caso, se perde até 40% do fluxo em relação ao modelo comum, que bombeia por elevação e abaixamento do volante em forma de T e alcança 1.233 litros por hora. A pressão permite captar água a até quatro metros de profundidade e lançá-la a centenas de metros, variando segundo o declive do terreno. “Um comprador disse que conseguiu irrigar 600 metros”, contou Abel.

Este camponês inventor acrescentou que vendeu mais de duas mil bombas no Nordeste e alguns para a África do Sul, empregando em sua produção 15 pessoas. Há interessados na Europa, destacou. Atualmente, tenta adaptar um biodigestor que conheceu na Índia, aproveitando materiais e insumos locais. Ele já produz biogás para seu fogão, mas sem alcançar a autossuficiência. Desde jovem, Abel busca tornar mais produtivo e menos cansativo o trabalho no campo. “Me chamavam de louco ou de preguiçoso. Diziam que inventava coisas para não trabalhar”, recordou.

Hoje é reconhecido por suas inovações e por fazer de sua propriedade um laboratório e uma vitrine de tecnologias para o desenvolvimento da agricultura familiar no semiárido. As visitas são numerosas e ajudam a disseminar experiências de sucesso. “Nossa vida melhorou 100%”, disse sua mulher, Jacira de Oliveira, mostrando seu fogão de chama azul e mais forte quando consome biogás. “Há alguns anos eu tinha dificuldade para comprar uma bicicleta, mesmo a prazo. Agora temos um automóvel e duas motocicletas”, ressaltou Abel.

Sua atividade produtiva se baseia em dados precisos. A seca, que já dura 27 meses, lhe custou a perda de 60% de suas 147 árvores frutíferas de diversas espécies, como laranja, goiaba e fruta-do-conde. Sobreviveram os exemplares mais adultos e de raízes profundas”, explicou. Para alimentar suas 38 cabras e ovelhas, converte em forragem tudo o que encontra, inclusive espécies consideradas ervas daninhas. E conhece suas qualidades nutricionais.

A folha da catingueira, árvore típica do bioma local, a Caatinga, tem 14% de proteína, o mesmo que o “pau de rato”. O mata pastagem, mato odiado pela população local, apresenta 20% a 22% de proteínas, detalhou Abel. “São muitas as espécies consideradas daninhas” cujo potencial alimentício se perde devido às crenças tradicionais, afirmou, mostrando as 11 espécies secando na pequena casa que usa como silo.

A velha cultura trava a inovação e o espírito empreendedor sob o argumento de que “meu pai sempre fez assim”, lamentou Abel. Inclusive em sua própria família há resistências entre os sete irmãos que vivem em propriedades vizinhas. Sua esperança são as crianças. Atualmente Abel dá aula sobre meio ambiente para 27 crianças de sua comunidade rural, e deseja ter sua própria escola, para ampliar a iniciativa em um projeto ecológico que batizou de Vida do Solo.

Esse sonho ficou mais próximo agora que é um qualificado funcionário da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico-Social e Meio Ambiente de Riachão do Jacuípe, cujo secretário, Esaú da Silva, um jovem de 23 anos, identificou em Abel os conhecimentos adequados para desenvolver a agricultura local com uma visão ambiental.

O principal problema não é a água, mas a “falta de assistência técnica” para os agricultores do município, onde 40% de seus 33 mil habitantes vivem no campo, disse Esaú. Jacuípe, o riacho local, está muito contaminado, mas é perene, uma vantagem no Nordeste do país onde a maioria dos rios seca na estiagem. Além disso, “temos muitas represas”, acrescentou, ressaltando que difundir a experiência de Abel resultará em melhor aproveitamento dessa água.

Contudo, a provisão de água de chuva é fundamental para a pequena agricultura em todo o semiárido. Em Riachão do Jacuípe, no interior da Bahia, chove pouco, entre 590 e 660 milímetros por ano, em média, e no ano passado caiu para 176 milímetros, segundo Abel. Os sistemas usados por ele são as chamadas tecnologias sociais promovidas há 14 anos pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), uma rede de mais de 800 organizações. Sua primeira meta, de construir um milhão de cisternas de 16 mil litros de água potável, está pela metade.

O governo de Dilma Rousseff decidiu acelerar e superar a meta, com a distribuição de 750 mil cisternas este ano e no próximo. No entanto, optou pela produção industrial, em material plástico, subvertendo o programa da ASA. O novo plano oficial substituiu as tradicionais placas de concreto, que custam a metade, e excluiu a participação comunitária na autoconstrução, que capacita para o melhor uso e fortalece a economia local e a cidadania.

As experiências de Abel e da ASA constituem também um contraponto ao projeto de transposição do rio São Francisco, com que o governo pretende melhorar o fornecimento de água para 12 milhões de habitantes do Nordeste. Esse megaprojeto está com pelo menos quatro anos de atraso e seu custo já chega a US$ 4 bilhões, quase o dobro do orçamento inicial. Além disso, não atenderá as famílias camponesas dispersas do semiárido, que concentra a pobreza e a maior vulnerabilidade às secas. É onde as cisternas e os programas sociais do governo foram decisivos para evitar agora as rebeliões sociais registradas em secas anteriores. Envolverde/IPS