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A sombra do fracasso em Ruanda, 20 anos depois

Sobreviventes do genocídio ruandês exumam os cadáveres de seus parentes assassinados durante o massacre de cem dias, em 1994. Foto: Edwin Musoni/IPS
Sobreviventes do genocídio ruandês exumam os cadáveres de seus parentes assassinados durante o massacre de cem dias, em 1994. Foto: Edwin Musoni/IPS

 

Nações Unidas, 17/1/2014 – Em 11 de janeiro de 1994, Romeo Dallaire, comandante da Missão de Assistência das Nações Unidas em Ruanda, enviou um fax à sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York para informar que uma fonte próxima ao governo do país africano lhe confiara que os tutsis estavam sendo obrigados a se registrar em Kigali. “Ele suspeita que é para seu extermínio”, escreveu Dallaire.

Em cinco meses, um milhão de ruandeses, de maioria tutsis, foram vítimas de um genocídio meticulosamente planejado e lançado por extremistas hutu. As tensões étnicas começaram depois que o avião em que viajava o presidente Juvénal Habyarimana foi derrubado por um míssil para impedir que ele assinasse um acordo de paz. A autoria do genocídio até agora não foi esclarecida.

Nestes dias, a Organização das Nações Unidas (ONU) relembra o sombrio 20º aniversário do que muitos consideram seu maior fracasso, uma oportunidade para refletir sobre o papel das forças de manutenção da paz no século 21. “Há 20 anos, a humanidade se viu abalada”, afirmou Dallaire a jornalistas no dia 14, em Nova York. “A comunidade internacional fez todo o possível para ignorar Ruanda. Não estava em seu radar, não era de seu interesse, não tinha valor estratégico”, ressaltou.

Simon Adams, diretor-executivo do Centro Mundial para a Responsabilidade de Proteger, que participou da entrevista coletiva junto com Dallaire e o embaixador de Ruanda, Eugene-Richard Gasana, disse que o genocídio nesse país e a “limpeza étnica” nos Bálcãs na década de 1990 constituíram um ponto de ruptura para as Nações Unidas.

Onze anos depois do genocídio, em 2005, a ONU lançou a iniciativa Responsabilidade de Proteger (R2P), que exorta os Estados a resguardarem sua própria população de assassinatos em massa e pede à comunidade internacional que adote ações coletivas para prevenir genocídios. “Sem a tragédia de Ruanda não teríamos a R2P”, afirmou Adams à IPS. “Não haveria forma de isso acontecer sem o processo de triste reflexão posterior e o fracasso total da ONU em 1994”, acrescentou.

Entretanto, em 2009, a ONU foi alvo de duras críticas por não ter feito mais durante os meses finais da guerra civil no Sri Lanka, na qual morreram mais de 40 mil civis. Um relatório interno das Nações Unidas de 2012 repercutia várias investigações feitas nos anos 1990 indicando que “o fracasso da ONU na hora de responder de forma adequada aos fatos como os ocorridos no Sri Lanka não devem se repetir”. E acrescenta que “diante de situações similares a ONU deve ser capaz de cumprir padrões muito mais altos no cumprimento de suas responsabilidades humanitárias e de proteção”.

Agora as missões de paz da ONU priorizam a proteção de civis, e a soberania já não tem precedente quando estes são atacados. Hoje espera-se que as operações de paz, como as últimas intervenções no Sudão do Sul e na República Centro-Africana, recebam autorização para usar a força a fim de impedir a morte de não combatentes.

Mas a missão de Dallaire não tinha esse mandato. Um ano depois da desastrosa missão na Somália, os países duvidavam em enviar tropas para Ruanda. Mesmo quando Dallaire pediu aos Estados Unidos que interceptasse as transmissões de rádio nas quais eram dadas instruções para matar, Washington se negou, temendo que isso implicasse violar a soberania ruandesa.

“A obrigação recai sobre cada Estado soberano que forma a ONU”, opinou Dallaire. “Todos os Estados soberanos lavaram as mãos, não quiseram se envolver. Viram aproximar-se outra catástrofe como a de Mogadíscio e fizeram todo o esforço para não se envolverem. Portanto, não houve prevenção. Houve palavras, mas não prevenção”, ressaltou.

Não só a ONU ignorou os pedidos de Dallaire, como durante o pior genocídio, quando a cada minuto eram assassinados sete ruandeses, seu Conselho de Segurança votou a favor de reduzir em 90% sua missão de manutenção de paz nesse país africano. Dallaire e várias centenas de soldados receberam ordem para abandonar Ruanda, mas se negaram. Tentaram desesperadamente proteger os civis, mas a matança superou os capacetes azuis, mal equipados.

Apenas três semanas antes de os rebeldes tutsi tomarem a capital e acabarem com o genocídio, o Conselho de Segurança finalmente aprovou uma intervenção francesa, mas os três mil soldados desse país permitiram que os hutu e o grupo paramilitar Interahamwe continuassem de posse de suas armas. A busca pelos responsáveis pelo genocídio continua até hoje. “A história julgou a ONU de forma muito severa por sua falta de ação em Ruanda, e devemos aprender as lições do passado”, pontuou Adams.

Em março de 2013, o Conselho de Segurança autorizou a criação de uma Brigada de Intervenção, força de resposta rápida que controlou com êxito os rebeldes do Movimento 23 de Março na República Democrática do Congo. “A nova força, com capacidade ofensiva, é um significativo progresso em relação aos mandatos anteriores, que eram tão restritivos”, destacou Dallaire.

“A manutenção da paz sempre sofre uma falta de reação rápida”, afirmou à IPS David Curran, conferencista sobre paz e resolução de conflitos na Universidade de Bradford, na Grã-Bretanha. “Há uma grande necessidade de examinar os conceitos de deslocamento rápido”, acrescentou.

Curran disse que os países ainda se queixam dos ambíguos mandatos que recebem as missões de paz, e muitos Estados membros, sobretudo do Sul em desenvolvimento, são reticentes em enviar tropas e seguir ordens do Conselho de Segurança, cujos integrantes em geral fornecem poucos soldados, ou nenhum.

“Certos Estados, principalmente do Movimento dos Países Não Alinhados, se sentem pressionados a fornecer soldados em situações onde há pouca paz a ser mantida”, afirmou Curran “Dizem receber mandatos muito vagos, relativos à proteção de civis, por parte do Conselho de Segurança, que, sem dúvida, tem uma maioria de Estados que não fornecem tropas para as operações de manutenção de paz”, acrescentou. Envolverde/IPS