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Sírios da liberada Homs não creem na “revolução”

“Nos roubaram a comida em 38 ocasiões. Nas primeiras vezes batiam à porta. Depois entravam com armas de fogo. Na última vez, levaram o feijão, o trigo, as azeitonas e finalmente o tomilho”, disse Zeinat al Akhras
“Nos roubaram a comida em 38 ocasiões. Nas primeiras vezes batiam à porta. Depois entravam com armas de fogo. Na última vez, levaram o feijão, o trigo, as azeitonas e finalmente o tomilho”, disse Zeinat al Akhras

 

Homs, Síria, 10/7/2014 – É iminente a trégua em Al Waer – a área mais povoada de Homs e último reduto insurgente da cidade, a terceira em tamanho da Síria –, semelhante à do acordo para a Cidade Velha em maio, quando os combatentes opositores abandonaram esse distrito. Em Al Waer vivem mais de  200 mil pessoas, muitas das quais abandonaram suas casas em outras partes da Síria para ficarem presas por três anos de combates entre o exército e os insurgentes armados em Homs, que tem um milhão de habitantes e fica no oeste do país.

Muitas áreas da cidade, chamada pela imprensa de “capital da revolução”, ficaram destruídas pelos bombardeios do exército e os mísseis e carros-bomba dos insurgentes. No dia 9 de maio, o governador, Talal Barazi, declarou Homs “vazia de armas e combatentes”. Uma trégua permitiu o retorno de seus habitantes, depois que os cerca de 1.200 insurgentes que haviam tomado a maior parte da Cidade Velha, no começo de 2012, a abandonaram em ônibus.

Alguns dos moradores que permaneceram na Cidade Velha durante o sítio falaram à IPS sobre sua terrível experiência e as perdas sofridas diante dos grupos armados que ocuparam Homs, entre eles as brigadas Nusra e Farooq, de uma ideologia radical sunita. Muitos argumentam que o ocorrido em Homs não foi uma revolução. O mesmo afirmava o padre jesuíta holandês Frans van der Lugt antes de ser assassinado, em 7 de abril, um mês antes da libertação da cidade.

“Fui batizado, me casei e batizei meus filhos nesta igreja”, disse Abu Nabeel, morador da Cidade Velha. A igreja de São Jorge, com suas paredes derrubadas, é uma das 11 destruídas no distrito. Já não tem seu teto de madeira e seus painéis e gelosias (grade de madeira cruzada que ocupa o vão de uma janela) de elaborado artesanato estão amontoados fora do antigo edifício. “A maior parte dos danos foi causada nos últimos dias antes da partida dos insurgentes. Mas vamos reconstruí-la”, assegurou Nabeel.

Voluntários já começaram a levantar os escombros e a pavimentar zonas danificadas da cidade. O interior em forma de abóbada de Santa Maria (Um al-Zinnar) exibe as marcas do incêndio causado pelos insurgentes ao se retirarem, além do saque e do vandalismo que sofreu, como os grafites sectários deixados nas paredes. “Retiraram todos os símbolos relacionados com o cristianismo. Inclusive do interior das casas. Se você tinha uma imagem da Virgem Maria, a retiravam”, contou Nabeel.

Os voluntários plantaram um jardim no pátio da igreja, para “devolver um pouco de beleza” a Homs, segundo disseram. No pátio da igreja foi colocada uma cadeira de plástico solitária enfeitada com flores e uma foto do sacerdote assassinado Van der Lugt.

Nazim Kanawati, que conhecia e respeitava o jesuíta, chegou ao lugar logo após o homem de 75 anos receber um tiro na parte de trás da cabeça. “Estávamos cercados e sitiados. Este era o único lugar onde podíamos ir. A igreja encantava a todos”, enquanto a maioria fugia. “Não queria partir. Sou sírio, tinha direito de estar aqui”, afirmou.

Embora tenha decidido ficar na Cidade Velha, Van der Lugt foi crítico dos insurgentes. “Desde o começo vi manifestantes armados que participavam dos protestos e começaram a disparar contra a polícia primeiro. Frequentemente a violência das forças de segurança é uma reação à brutal violência dos rebeldes armados”, escreveu o sacerdote em janeiro de 2012.

Houve “gente em Homs que já estava armada e preparada antes de começarem os protestos. Se não tivessem planejado desde o começo, não haveria essa quantidade de armas”, disse Kanawati. Nabeel explicou que viviam “cem mil cristãos na Cidade Velha de Homs antes de ser tomada pelos terroristas. A maioria fugiu em fevereiro de 2012. Em março só restavam 800, e no final pouco mais de cem”.

O assédio do exército para expulsar os insurgentes teve um efeito drástico na vida cotidiana dos moradores que permaneceram. Antes de Homs ser libertada, a vida se tornara impossível. “No começo havia comida, mas começou esgotar. No final não tínhamos nada, comíamos o que podíamos encontrar”, contou Kanawati.

Mohammed, do distrito de Qussoor, é um dos 6,5 milhões de sírios refugiados dentro do país. “Agora sou um refugiado em Latakia. Trabalho em Homs dois dias por semana e volto para Latakia, onde fico na casa de um amigo. Saí da minha casa no final de 2011, antes que a área fosse tomada pelas brigadas Nusra e Farooq”, explicou.

No início de 2011, “alugava uma casa em um bairro diferente de Homs, enquanto reformava a minha. Da varanda via as manifestações, que não reclamavam liberdade e nem mesmo a derrubada do regime”, afirmou Mohammed. “Gritavam lemas sectários. Diziam que iam se banhar em sangue em Al Zahara, um bairro alauíta. E também em Al Nezha, onde há muitos alauítas e cristãos”, acrescentou.

As janelas e o ferrolho da porta da casa de Aymen e Zeinat al Akhras desapareceram, mas a casa em si estava intacta. Zeinat, uma farmacêutica, e Aymen, engenheiro químico, sobreviveram à presença dos homens armados e ao assédio na Cidade Velha. Nas últimas semanas, “recuperei cinco quilos”, contou ela. “Havia baixado para 34 quilos. Uma menina de dez anos pesa mais do que isso. E Aymen pesava 43 quilos. Um homem com 43 quilos”, disse, entre risadas.

“Nos roubaram a comida em 38 ocasiões. No começo batiam na porta. Depois entravam com armas de fogo. Da última vez, levaram o feijão, o trigo, as azeitonas e o tomilho”, detalhou Zeinat. Ela contou que, depois, em fevereiro de 2014, “começamos a comer ervas e as plantas que encontrávamos e isso é tudo o que tivemos até a libertação de Homs”, em maio.

Embora a Cidade Velha tenha recuperado a calma, os insurgentes continuam explodindo carros-bomba e lançando mísseis sobre zonas povoadas de Homs. Os ataques causaram dezenas de mortos em junho. No dia 26 do mês passado, as brigadas Nusra, grupo vínculado à rede islâmica Al Qaeda e uma das principais facções que ocuparam Homs, declarou sua lealdade ao extremista Estado Islâmico do Iraque e do Levante (Isis).

Esta lealdade a um grupo cujas decapitações, mutilações e açoites de suas vítimas sírias e iraquianas estão documentadas dá mais crédito à opinião dos habitantes de Homs, que asseguram que os acontecimentos na Síria não são uma revolução. Envolverde/IPS