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República Centro-Africana com nova presidente e a mesma crise?

Desde que os rebeldes do Séléka tomaram o poder na República Centro-Africana, em março de 2013, cerca de 200 mil pessoas se transformaram em refugiados por causa do conflito. Foto: EU/ECHO/M. Morzaria/cc by 2.0
Desde que os rebeldes do Séléka tomaram o poder na República Centro-Africana, em março de 2013, cerca de 200 mil pessoas se transformaram em refugiados por causa do conflito. Foto: EU/ECHO/M. Morzaria/cc by 2.0

 

Washington, Estados Unidos, 24/1/2014 – A designação na República Centro-Africana de Catherine Samba-Panza como presidente de transição gera esperanças em muitos de que possa terminar com os conflitos étnicos. Porém, analistas têm suas dúvidas. Samba-Panza foi nomeada no dia 20, em meio a episódios de violência entre rebeldes muçulmanos do Séléka e milícias cristãs.

“Como primeira mulher chefe de Estado da República Centro-Africana desde a independência do país, e com seus antecedentes especiais em matéria de trabalho pelos direitos humanos e mediação, tem uma oportunidade única de fazer avançar o processo de transição política, de unificar todas as partes para acabar com a violência, e de guiar seu país para eleições, no mais tardar, em fevereiro de 2015”, disse no dia 21 o secretário de Estado norte-americano, John Kerry.

Entretanto, alguns analistas em Washington duvidam que a nomeação da nova presidente ofereça uma renovada oportunidade para paz. “Há uma elite predadora que explora em grande parte o país”, disse à IPS J. Peter Pham, diretor do Centro da África no Conselho Atlântico, um grupo de especialistas com sede em Washington. “Lamentavelmente, acabam de eleger uma integrante dessa elite para ser a chefe de Estado interina”, acrescentou.

Embora Samba-Panza seja cristã, desfruta de vínculos próximos com seu antecessor, Michel Djotodia. “Ela está entre os políticos cristãos que se alinham com o Séléka”, disse Pham. Djotodia havia designado de forma direta Samba-Pamza com prefeita de Bangui, a capital, em abril, pouco depois de chegar à Presidência. Mas sua nomeação como presidente interina foi feita pelo Conselho Nacional de Transição, integrado por membros nomeados exclusivamente por Djotodia.

Pham acredita que um governo de Samba-Panza gera dúvidas sobre o compromisso de longo prazo da comunidade internacional com a República Centro-Africana. “Na comunidade internacional não há interesse, assim não existe um plano de longo prazo para a missão” de paz da União Africana e da França no país, afirmou. “Portanto, temo que a realidade seja que se apresente essa nomeação da forma mais positiva possível e que seja usada para cobrir uma retirada ignominiosa”, ressaltou Pham.

No momento, os Estados Unidos continuam enviando assistência financeira para aliviar a crise. No dia 20, Washington anunciou um pacote adicional de alívio de US$ 30 milhões, o que eleva o total da ajuda norte-americana para os esforços humanitários na República Centro-Africana para cerca de US$ 45 milhões. Isso se soma aos US$ 101 milhões destinados a restabelecer a segurança e US$ 7,5 milhões para apoiar os esforços de reconciliação.

“Um quinto de Bangui vive agora em um vasto e miserável acampamento, enquanto os cidadãos aterrorizados buscam segurança para se proteger da violência e dos saques”, contou, no dia 20, Nancy Lindborg, funcionária da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), após viagem de dois dias à República Centro-Africana.

“O governo dos Estados Unidos intensificou urgentemente nossa assistência para ajudar a entregar alimentos vitais, água e atendimento médico aos mais de 2,6 milhões de mulheres, crianças e homens que deles necessitam com urgência em todo o país”, acrescentou Lindborg.

A atual crise na República Centro-Africana começou quando os rebeldes do Séléka tomaram o controle de Bangui, derrubando o então presidente François Bozizé e colocando Djotodia no poder, em abril.

“Desde que o Séléka tomou o poder em março desataram uma onda de matanças, queimando aldeias inteiras, saqueando e atacando brutalmente civis em grande escala”, disse à IPS Philippe Bolopion, diretor na Organização das Nações Unidas (ONU) da Human Rights Watch (HRW). “Chegam a uma aldeia, matam algumas pessoas, expulsam todos de suas casas, saqueiam tudo o que podem, queimam as casas e vão embora”, acrescentou.

Djotodia tentou dissolver o Séléka para deter seus crimes de guerra e ataques contra civis. “No final de setembro, Djotodia decidiu que se livraria do Séléka porque estavam saindo do controle, e foi então que as coisas se precipitaram. O fez, mas eles não tinham nenhum lugar para ir, e ele nunca contou com a lealdade do povo que o impulsionara”, disse Pham.

O Séléka continua operando fora do controle do governo e toma por alvo os civis, o que gera enfrentamentos com as milícias predominantemente cristãs. Embora Bozizé inicialmente tenha criado essas milícias, conhecidas como antibalaka”para combater as gangues, elas começaram a responder aos abusos do Séléka contra os cristãos com ataques semelhantes contra os muçulmanos, fazendo a violência aumentar rapidamente.

“Eles tomaram por alvo civis muçulmanos só por serem muçulmanos. Seus ataques são tão brutais e ferozes como os do Séléka”, disse Bolopion, da HRW. “Quando estive na República Centro-Africana em novembro conversei com um aldeão muçulmano que descreveu como as antibalaka chegaram à sua casa pela manhã colocando para fora seus netos, filhos e duas mulheres e degolaram todos”, acrescentou.

Embora o conflito na República Centro-Africana pareça ser puramente religioso à primeira vista, a designação de uma cristã para a Presidência por parte de outras pessoas selecionadas pelo muçulmano Djotodia indica que o conflito tem suas variações. Pham afirma que a violência é, na realidade, étnica.

“A elite política teve a religião como motivo de divisões, que não é realmente uma fonte de conflito”, poontuou Pham. “Não se trata de um conflito religioso, mas a religião marca os grupos étnicos”, explicou. Os próprios séléka inclusive mataram muçulmanos que vivam em áreas de maioria cristão.

As tensões entre o Séléka e os antibalaka chegaram ao ponto de ebulição em dezembro, quando os enfrentamentos entre os dois grupos e seus ataques contra civis aumentaram drasticamente. Embora Djotodia tenha renunciado no dia 10, em uma tentativa de aliviar o caos, a violência continua despertando temores de que ocorra um genocídio.

“A situação não se estabilizou em absoluto, e nos preocupam muito as represálias maciças contra a população muçulmana agora que o Séléka está em fuga”, afirmou Bolopion. “Justamente agora, o país está à beira da anarquia total”.

Caso a violência continue, analistas apresentam propostas para ajudar a pôr fim ao conflito. “Pensamos que é preciso um enfoque de duas mãos”, explicou Bolopion. “Uma para impulsionar a capacidade do poder civil no terreno. Mas também devemos trabalhar em muitas tarefas para reconstruir o país, como a solução de mais longo prazo de reconstruir o exército, o sistema judicial e a função básica de administração”, afirmou.

Atualmente, a França tem1.600 soldados na República Centro-Africana, enquanto se prevê que a União Europeia ofereça mais 500. “É necessária toda a ajuda que possam receber, porque é muito difícil”, enfatizou Bolopion. Pham destacou que a ONU autorizou uma força de até dez mil efetivos, e até agora não se chegou nem perto dessa quantidade. “O que vemos na República Centro-Africana é simplesmente a evaporação das poucas instituições que existiam”, concluiu. Envolverde/IPS