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Um povo preso entre os dois Sudão

Uma mulher se registrando para votar em uma escola de Abyei, no dia 20 deste mês. Foto: Andrew Green/IPS
Uma mulher se registrando para votar em uma escola de Abyei, no dia 20 deste mês. Foto: Andrew Green/IPS

 

Abyei, fronteira entre Sudão e Sudão do Sul, 31/10/2013 – Quando Chris Bak regressou ao disputado território fronteiriço de Abyei, que essa semana votou para decidir sua união ao Sudão ou ao Sudão do Sul, a duras penas identificou o povoado em que crescera. “Tudo está sujo. Dávamos voltas e mais voltas, e não pudemos reconhecer esse lugar”, contou à IPS. A cidade de mesmo nome fica no centro da região, que ocupa dez mil quilômetros quadrados e está na fronteira entre Sudão e Sudão do Sul.

Os dois países a reclamam, pois possui reservas de petróleo e uma vasta superfície de terra fértil. Em 2005, um acordo de paz pôs fim à guerra civil sudanesa e cimentou o caminho para a independência do Sul, mas não conseguiu resolver o destino de Abyei.

Desde que voltou, Bak acampa em uma escola abandonada, torcendo para não chover, pois o prédio não tem teto. Compartilha esse abrigo com um amigo que apresenta sintomas de ter contraído malária. Bak tentou encontrar um médico, mas está há três dias sem conseguir. “Precisamos fazer Abyei avançar”, afirmou. Esse jovem de 25 anos passou cinco fora do país e regressou ao seu povoado para participar de um referendo inicialmente proposto pela União Africana (UA) para este mês, a fim de decidir o destino da disputada região.

Contudo, o Sudão negou-se a participar, pois o referendo excluiria os membros da comunidade nômade e pró-sudanesa misseriya, que chegam a Abyei por temporadas para levar o gado para pastar. Devido à intransigência de Cartum, a UA não organizou a votação, nem apresentou nova proposta. Isso não afetou o ânimo da etnia majoritária dinka ngok, que seguiu adiante com um referendo unilateral concluído no dia 29.

A organização de líderes tribais Alto Comitê do Referendo de Abyei começou, em setembro, a organizar o transporte para quem quisesse participar da votação. O Alto Comitê estima que cerca de cem mil pessoas retornaram graças à sua gestão, embora seja impossível verificar esse número. Os organizadores da consulta planejam anunciar o resultado hoje. É provável que a maioria tenha se pronunciado por integrar-se ao Sudão do Sul.

No entanto, a UA criticou duramente a consulta, qualificando-a de “ação ilegal” e alertando que pode ameaçar a paz da região. O Sudão do Sul avisou que não reconhecerá os resultados. “Se o povo de Abyei decidir, veremos a quem serão dirigidos os resultados, porque disse que o faria sem os governos do Sudão e do Sudão do Sul. Assim, se fez sem nós, a quem dirigirá o resultado?”, questionou na semana passada o porta-voz do governo sul-sudanês, Michael Makuei Lueth.

Alfred Lokuji, professor de paz e desenvolvimento rural na Universidade de Juba, acredita que a votação não servirá muito nessas condições, pois não será reconhecida nem pela UA e nem pelo Sudão do Sul. Tampouco acredita que vai gerar algum tipo de violência. O referendo unilateral é “simbólico”, destinado a mostrar que a comunidade dinka ngok esta determinada a ver a situação resolvida, pontuou Lueth à IPS.

O presidente do Sudão, Omar al Bashir, viajou na semana passada até Juba para se reunir com seu colega do Sudão do Sul, Salva Kiir. No final do encontro, ambos anunciaram planos para estabelecer uma administração e uma força policial conjuntas em Abyei, mas não fixaram prazos. Os líderes dos dinka ngok, cansados de viver no limbo, rejeitaram a proposta.

Isso se deve, em parte, ao fato de já não poderem se dar o luxo de esperar que Juba, Cartum e a comunidade internacional cheguem a uma solução permanente. Em 2008, houve enfrentamentos em Abyei entre milícias apoiadas pelo governo sudanês e forças do que então era o sul do Sudão. A organização Human Rights Watch estima que 60 mil pessoas fugiram da violência. Naquele momento, Bak e sua família fugiram para Aweil, cinco horas de carro a oeste de Abyei, que hoje é Sudão do Sul.

Os combates se reavivaram em 2011, uma semana antes de o Sudão do Sul se separar oficialmente do Sudão para se converter no país mais novo do mundo. As batalhas deixaram Abyei em ruínas. O território está cheio de escombros de casas derrubadas. Uma torre vermelha e branca de telefonia celular caiu retorcida sobre árvores e prédios e ali continua.

Ao promover o retorno de milhares de pessoas para que vissem pessoalmente a devastação de Abyei, os dirigentes da comunidade dinka ngok agora se veem sob pressão para agir, por parte de pessoas como Michael Acuil Deng, um engenheiro que vivia em Juba. “Olhe em volta, precisamos de muito planejamento para que nossa área seja a melhor. Agora tudo é como o deserto. Começamos do zero. Temos que reconstruí-la”, argumentou.

Porém, o desenvolvimento é difícil em uma terra de ninguém. Deng Agos Lowal permaneceu em Abyei apesar dos enfrentamentos, e integra a Comissão de Bem-Estar Social da região, órgão local que tenta fornecer serviços básicos à população. Porém, como não tem apoio nem de Juba nem de Cartum, pouco pode fazer. “As crianças e os idosos morrem. Não há serviço médico”, contou à IPS.

É visível a presença de uma força de manutenção da paz da Organização das Nações Unidas (ONU), mas a incerteza a respeito do futuro do território mantém afastada a maioria das organizações humanitárias, explicou Lowal. Tudo o que se pode fazer é esperar o resultado do referendo, acrescentou. Somente quando isso for resolvido é que se poderá começar a reconstrução.

Apesar das advertências de Juba e Cartum, os líderes da etnia dinka ngok têm esperanças de que a comunidade internacional termine reconhecendo o resultado de seu referendo unilateral. O chefe principal da tribo, Bulabek Deng Kuol, espera que ao menos a consulta faça a comunidade internacional deixar de ignorar as necessidades de Abyei. “Estamos emocionados com a possibilidade de reconstruir, de colocar nossa energia em tudo. Esperamos que todas as organizações corram para ajudar essa população”, ressaltou Kuol à IPS. Envolverde/IP