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Portugal e a rebelião dos cabelos brancos

Aposentados protestam na Praça do Município, em Lisboa. Foto: Katalin Muharay/IPS
Aposentados protestam na Praça do Município, em Lisboa. Foto: Katalin Muharay/IPS

 

Lisboa, Portugal, 16/8/2013 – Os mais indefesos são as principais vítimas dos cortes drásticos das aposentadorias dos funcionários públicos, anunciados esta semana pelo governo português do conservador primeiro-ministro Pedro Passos Coelho. Por isso as ruas se enchem de aposentados protestando. Nunca antes se viu tantos cabelos brancos nas frequentes manifestações contra o governo.

Lado a lado com os trabalhadores ativos e os desempregados, muitas vezes de braço dado com seus netos, os mais velhos foram para as ruas contra o confisco, em defesa de seus frágeis direitos. Desde que o Fundo Monetário Internacional, a União Europeia e o Banco Mundial começaram, em junho de 2011, a ditar as normas para as finanças públicas do país, a mão dura caiu sobre os mais vulneráveis: trabalhadores precários, funcionários públicos e aposentados.

As condições impostas pela chamada troika financeira para aprovar um crédito de US$ 110 bilhões destinados a resgatar a economia lusa são especialmente duras para as camadas menos favorecidas dos 10,6 milhões de portugueses. Os cortes anunciados pelo governo para este e o próximo ano no aparato estatal chegam a US$ 4,92 bilhões, metade da quantia destinada à capitalização de três bancos privados em dificuldades, acusam a oposição e os sindicatos.

O corte adicional das aposentadorias é ainda pior do que “todas as más ações que já foram cometidas contra os pensionistas”, denunciou Jorge Nobre dos Santos, presidente da Frente Sindical da Administração Pública (Fesap). “O dinheiro foi e continua sendo manejado por qualquer pessoa, governos e governantes, sem perguntar nada aos seus legítimos proprietários”, que são os que durante toda sua vida profissional contribuíram para a Seguridade Social Portuguesa (SSP), acusou o sindicalista.

Santos afirmou que a proposta é retroativa, violando todos os compromissos assumidos pelo Estado com seus trabalhadores aposentados e a estratégia é englobar todas as aposentadorias, “seja do setor público ou do privado. A credibilidade do Estado foi colocada em dúvida, porque o senhor primeiro-ministro a está minando”, concluiu. O Sindicato Frente Comum das Administrações Públicas acredita que a proposta do governo “é um roubo” e se compromete a fazer todo o possível para evitar que se concretize.

“A tentativa de reduzir o valor das aposentadorias é um despojo contra os que contribuíram com o direito à pensão”, disse o representante da Frente, Teles Alcides. A única alternativa para centenas de milhares de portugueses “é a indignação por estas medidas, que são de uma crueldade inaudita, um autêntico assalto contra os que descontaram por toda uma vida de trabalho, de um dinheiro que não é do Estado, mas nosso”, disse à IPS o aposentado Armindo Brandão, que verá sua pensão da SSP reduzida em 9,5%.

“Para mim, que tenho aposentadoria de US$ 1.020, esta é uma quantia enorme, além de ser simplesmente um assalto, mas como o roubo é cometido pelo governo, o ladrão não é preso”, destacou Brandão. Os protestos dos aposentados já se tornaram violentos, registrando-se quase diariamente agressões verbais e até físicas contra funcionários da SSP ou da Direção Geral de Impostos.

Esta autêntica rebelião contra as autoridades do Estado, segundo a Associação de Aposentados (ARE), acontece porque continuam os ataques a este segmento vulnerável da população, “que dia a dia vê sua aposentadoria diminuir por meio de novos impostos e reduções”. Esta situação “configura um verdadeiro confisco contra quem descontou a vida toda e agora vê sua aposentadoria cortada em um exercício de despojo sem precedentes”, afirma um comunicado da ARE.

O sentimento prevalecente entre os mais afetados pela crise é o de profunda injustiça, como deixa patente uma carta enviada ao jornal Público de Lisboa pelo leitor Manuel Morato Gomes. Enquanto são anunciados cortes até nas pensões por viuvez, não são explicadas “as exceções dos ex-magistrados e ex-diplomatas, bem como as subvenções vitalícias para quem foi deputado, membro de governo e ex-presidentes”, acusou Gomes. Em seguida pergunta onde está a justiça, a moral, a igualdade e o senso comum de tal medida, e acusa Passos Coelho de “agir somente de acordo com sua teoria liberal, desprezando completamente as pessoas”.

A este respeito a IPS consultou outro aposentado, o ex-soldado Feliciano, que combateu nas guerras coloniais nas então províncias de ultramar africanas (1961-1974), onde perdeu uma perna, e recebe uma modesta pensão por invalidez. Não revela seu sobrenome “por medo de represálias”, disse, para em seguida lamentar “a falta de sensibilidade e de respeito por nós, que fomos à África defender a bandeira em uma guerra injusta, na qual nem sempre acreditávamos”.

“Sobrevivi à guerra na Guiné Bissau apesar de ter ficado ferido, mas é provável que não sobreviva a este governo, que só pensa em se desfazer dos velhos, que morram o mais rápido possível para assim ajustar as contas do Estado”, enfatizou Feliciano. Os vários cortes orçamentais anunciados, que incluem demissões no serviço público, são alvo de um pedido de fiscalização preventiva do presidente de Portugal, Anibal Cavaco Silva, ao Tribunal Constitucional (TC) sobre a eventual ilegalidade da proposta de lei do governo que contempla os cortes.

Em seu editorial o jornal Público diz que o conservador Cavaco Silva não se baseou em uma remota suspeita de inconstitucionalidade da lei, mas que “seus artigos são tão drásticos, sua cobertura tão vasta e suas potenciais consequências na vida de milhares de cidadãos são tão penalizantes que nenhum presidente se arriscaria a promulgá-la sem a aprovação do TC”. O matutino lisboeta conclui prevendo que, em caso de veto pelo TC, “os radicais dos ajustes dirão novamente que a Constituição se converteu em uma força de bloqueio que arrasta o país para o precipício. Podem dizer, sempre que depois não sustentem que um Estado de direito coexista com violações à Constituição”. Envolverde/IPS