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Pobreza infantil envergonha a Espanha

Manifestantes reivindicando direito a um teto, diante do despejo pelas autoridades de 132 famílias e uma dezena de menores de idade que ocupavam a corrala Buenaventura, na cidade espanhola de Málaga. Foto: Inés Benítez/IPS
Manifestantes reivindicando direito a um teto, diante do despejo pelas autoridades de 132 famílias e uma dezena de menores de idade que ocupavam a corrala Buenaventura, na cidade espanhola de Málaga. Foto: Inés Benítez/IPS

 

Málaga, Espanha, 9/4/2014 – “Não quero que cresçam com a noção de que são pobres”, disse Catalina González sobre seus dois filhos, com os quais vive desde dezembro em um apartamento cedido gratuitamente por seu proprietário em troca de reformas, na cidade espanhola de Málaga. Há seis meses, González, de 40 anos, e seus filhos Manuel e Leónidas, de 4 e 5, respectivamente, foram despejados pelas autoridades da corrala Buenaventura, que ocupavam junto com 13 famílias sem recursos com uma dezena de crianças. Desde então as crianças “têm ojeriza da polícia, por acharem que ela roubou sua casa”, contou à IPS.

Corralas são antigos prédios quadrados, com pátio central de acesso a cada moradia, um tipo de construção coletiva característica da Espanha, similar a uma vila. Esses prédios têm sido ocupados pela população que não tem onde morar.

A Espanha é o segundo país da União Europeia com maior pobreza infantil, atrás da Romênia, informa o documento A Crise Europeia e seu Custo Humano. Um Chamado para Alternativas e Soluções Justas, apresentado no dia 27 de março em Atenas pela organização Cáritas Europa. O terceiro lugar é da Bulgária, seguida da Grécia, segundo essa entidade católica. As medidas de austeridade impostas nos países europeus afogados pela dívida externa, “falharam na hora de solucionar os problemas e gerar crescimento”, afirmou o secretário-geral da Cáritas Europa, Jorge Nuño, durante a apresentação do estudo.

“Estamos bem. As crianças já estão pré-matriculadas no colégio para o próximo curso”, disse González. Originária de Barcelona, ela deixou na Itália o pai de seus filhos ao descobrir que os “maltratava”. Recomeçou do zero em Málaga sem família, emprego, renda, cobrindo as necessidades graças à solidariedade de vários coletivos sociais e redes de apoio mútuo.

Um informe deste ano do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) assegura que, em 2012, mais de 2,5 milhões de meninos e meninas viviam em famílias espanholas pobres, cerca de 30% do total. O Unicef afirma que 19% da população infantil espanhola vive em famílias de quatro membros, com renda anual inferior a US$ 15 mil. “A pobreza infantil é uma realidade na Espanha, embora os políticos queiram fazer vista grossa a respeito e não gostem que falemos sobre isso porque se associa a países terceiro-mundistas”, disse à IPS o fundador e presidente da organização não governamental Mensageiros da Paz, o padre católico Ángel García.

O ministro da Fazenda da Espanha, Cristóbal Montoro, assegurou, no dia 28 de março, que os dados divulgados pela Cáritas Europa “não correspondem à realidade” porque se baseiam em “medições estatísticas”. Mas em Málaga “cada vez são mais as mães que fazem fila para conseguir alimento”, pontuou à IPS o presidente da Anjos Malaguenhos da Noite, Ángel Meléndez. Essa organização fornece diariamente 500 desjejuns, 1.600 almoços e 600 jantares para pessoas sem recursos.

González e seus filhos se alimentaram durante meses no Er Banco Güeno, um restaurante social gerenciado pelos próprios moradores no desfavorecido bairro malaguenho de Palma-Palmilla, que funciona em uma agência bancária desativada. Segundo o padre Ángel, a pobreza infantil “não é só não ter o que comer”, mas também “o não poder adquirir livros para ir à escola ou não ter comprado uma roupa nova nos últimos dois anos. É a desigualdade de oportunidades entre as crianças”, resumiu.

A crise na Espanha afetou os setores tradicionalmente mais fracos e também famílias de classe média. Em 2013, o governo do direitista Mariano Rajoy aprovou um Plano Nacional de Ação para a Inclusão Social 2013-2016, destinado a reduzir a pobreza infantil. A divisão europeia da Cáritas diz em seu informe que pelo menos um milhão e meio de famílias espanholas sofrem uma situação de exclusão social severa, 69,8% mais do que em 2007, ano anterior ao surgimento da crise financeira mundial.

“Famílias inteiras se viram na rua por não poderem pagar o aluguel. Há mais solicitações de alimentos. Pedem até fraldas para os recém-nascidos porque não têm como enfrentar situação tão precária”, explicou à IPS a diretora do Centro de Acolhida municipal, Rosa Martínez, durante uma visita à instituição.

Da população economicamente ativa, 26% carece de emprego, a metade jovens, segundo o Instituto Nacional de Estatística, enquanto cresce a brecha entre ricos e pobres. Ao terminar março, havia 4,8 milhões de desempregados, segundo dados oficiais, com ligeira queda em relação a fevereiro. Mas os números também mostram que aumentaram os desempregados que não recebem dinheiro algum. Agora são quatro em cada dez.

O descontentamento social se aviva também por causa de algumas medidas de austeridade que concentraram seus cortes em setores como saúde, educação e proteção social.

O informe Emergência Habitacional no Estado Espanhol, da Plataforma de Afetados pela Hipoteca e do Observatório Desc, calcula que 70% das famílias despejadas ou em processo de despejo têm ao menos um menor de idade sob sua responsabilidade. “O direito à igualdade de oportunidades é papel rasgado se uma criança fica na rua”, ressaltou à IPS o advogado José Cosín, que denuncia a situação de vulnerabilidade dos menores despejados junto com suas famílias em 3 de outubro do ano passado da corrala Buenaventura.

Quinze afetados por esse despejo apresentaram uma queixa judicial pelas garantias fundamentais dos menores constantes na Convenção dos Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989. Esta estabelece que “os Estados partes proporcionarão assistência material e programas de apoio, particularmente com relação a nutrição, vestuário e moradia”.

As famílias sem nenhuma renda passaram de 300 mil, em meados de 2007, para quase 700 mil no final de 2013, segundo o documento Precariedade e Coesão Social. Análises e Perspectivas 2014 da Cáritas Espanhola e da Fundação Foessa, que ressalta o valor das relações sociais como um recurso para evitar a fratura social. Enquanto isso, 27% das famílias são mantidas por aposentados com suas pensões. Os filhos retornam com suas famílias para viver com seus pais a fim de sobreviverem, ou os avós pensionistas financiam parte dos gastos dos filhos e netos, com sua renda às vezes mínima.

“Diante da dureza das situações, o tecido humano se fortalece”, destacou González, ressaltando a solidariedade de diferentes grupos malaguenhos, que por três meses a ajudaram a limpar e deixar decente sua casa atual, um décimo andar sem elevador, que estava cheio de lixo, sem porta de entrada, janelas nem encanamentos. Ela lamentou “a falta de orçamento e eficiência dos serviços sociais, dos quais nada recebe”.

Seus filhos têm os caprichos próprios de suas idades, mas sua mãe explica a eles que é mais importante gastar oito euros com comida do que em dois peixes de borracha. Demorou várias semanas para comprar-lhes os bonecos. No último Natal, foram ao cinema pela primeira vez. Envolverde/IPS