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Os novos desafios de Vieques

Visitantes percorrem a propriedade de Jorge Cora. Foto: Elisa Sánchez
Visitantes percorrem a propriedade de Jorge Cora. Foto: Elisa Sánchez

 

Vieques, Porto Rico, 12/2/2014 – Uma década depois da retirada da marinha dos Estados Unidos, a ilha porto-riquenha de Vieques enfrenta novos desafios, e o renascimento de seu setor agrícola se vê ameaçado por um legado de lixo militar tóxico com consequências incertas. Entre 1999 e 2003, Vieques, com o dobro do tamanho da ilha nova-iorquina de Manhattan, foi palco de uma maciça campanha de desobediência civil contra a presença da marinha norte-americana, que usava a ilha como lugar de prática de bombardeios desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Porto Rico é oficialmente um território dos Estados Unidos com status de autogoverno.

Em 2003 foi fechado o campo de bombardeios. Mas Vieques enfrenta agora outros desafios, como o desemprego e problemas básicos de infraestrutura, saúde e transporte. O principal meio de transporte entre Vieques e a ilha principal de Porto Rico é uma balsa que viaja 30 quilômetros entre a localidade de Fajardo e o porto da aldeia viequense de Isabel Segunda. Contudo, o serviço sofre frequentes avarias e atrasos, situação que desestimula o turismo e dificulta a vida diária de quem mora em Vieques e precisa viajar para a ilha principal porto-riquenha.

“O transporte aqui é um desastre”, reclamou Robert Rabin, um norte-americano que se mudou para Vieques em 1980 e foi uma das principais figuras do movimento contra a marinha. “Essa situação atenta contra o desenvolvimento econômico da ilha e contra a saúde de seus moradores. Quando os idosos e os doentes precisam viajar para a ilha maior em busca de atendimento médico não podem chegar a tempo devido ao péssimo serviço de balsa”, destacou.

Rabin, que trabalha no museu histórico Conde de Mirasol, em Isabel Segunda, e na Rádio Vieques, uma emissora comunitária recentemente criada, contou que a ilha de Culebra, cerca de 15 quilômetros ao norte de Vieques, sofre problemas de transporte semelhantes. “Isso demonstra que o governo de Porto Rico não está comprometido nem com o desenvolvimento econômico de Vieques nem como o de Culebra”, ressaltou.

Moradores das duas ilhas se sentem deslocados pela entrada em massa de novos residentes milionários, em sua maioria cidadãos norte-americanos, no que parece ser um processo de “aburguesamento”. Rabin contou que essa situação também ocorre na ilha principal de Porto Rico e nas vizinhas Ilhas Virgens. “Vejo um aumento no controle do turismo local por parte de estrangeiros, particularmente norte-americanos. O governo não respondeu ao problema. E a comunidade local não é capaz de responder de forma coerente devido à falta de organização”, acrescentou.

“Há alguns estrangeiros que estabeleceram negócios aqui e oferecem bons empregos aos residentes, mas são exceção. A maioria dá trabalho a amigos que trazem dos Estados Unidos, e oferecem aos residentes de Vieques só os empregos com salários menores, como os de manutenção”, detalhou Rabin.

Os moradores locais chamam de “aves de passagem” muitos desses estrangeiros, pois permanecem em Vieques não mais de seis meses ao ano. “Quando partem, alugam suas propriedades por milhares de dólares semanais, ou mesmo a US$ 1 mil por noite. Algumas dessas casas são verdadeiros palácios”, segundo Rabin. Mas nem todas as “aves de passagem” são norte-americanos ricos. Alguns chegam em busca de melhor emprego no turismo ou na construção, e outros trabalham como carpinteiros ou eletricistas. Os mais pobres vivem em barracas na praia da Bahía del Sol, na costa sul da ilha.

Vieques experimentou um renascimento em seu setor rural. Novas operações agrícolas, tanto convencionais como orgânicas, floresceram nos últimos anos. Uma destas é a pequena companhia Hydro Organics, que opera uma área de 12 hectares chamada La Siembra de Vieques, localizada entre os setores de Luján e Esperanza. La Siembra produz abóbora, feijão, papaia, moringa, abacate, coco, berinjela, pinha, goiaba, alface e outros produtos. Parte do trabalho é feito por mochileiros estrangeiros, que viajam de uma propriedade a outra trabalhando por comida e alojamento temporário.

A propriedade é gerida segundo os princípios da permacultura, uma disciplina que combina o desenho ecológico com a agricultura sustentável. “Estamos começando com a agricultura apoiada pela comunidade”, disse Vanessa Valedon, da Hydro Organics. “Temos consumidores-investidores que pagam nossa colheita seis meses adiantado”, afirmou.

Em Monte Carmelo, uma área próxima ao antigo campo de bombardeio da marinha norte-americana, fica a propriedade de Jorge Cora. Não tem água nem eletricidade, e não há caminhos pavimentados que levem a ela. Cora planta alface, pimentão, tomate, manjericão, tabaco e beterraba, entre outros, tudo sem usar agroquímicos. “Não recebo nenhum tipo de ajuda do governo, nem mesmo cupons de alimentação”, contou, orgulhoso de sua independência. “Se posso fazer tudo isso sem químicos nem ajuda do governo, desafio os agricultores industriais convencionais a fazerem o mesmo”.

Mas há um debate quanto à produção de Vieques ser realmente segura para o consumo. Alguns dizem que todos os assentamentos agrícolas da ilha estão a sotavento com relação ao antigo campo de bombardeio, onde por 60 anos foram disparados diferentes tipos de projéteis, lançando pó e estilhaços contaminados com químicos e transportados pelo vento para as áreas civis.

Na década de 1990, o Departamento de Saúde de Porto Rico determinou que a incidência de câncer entre os viequenses era de 26,9%, acima da média nacional. O movimento contra a marinha norte-americana atribuiu esta anomalia à contaminação com tóxicos gerados pelas atividades militares.

O biólogo Arturo Massol, professor na Universidade de Porto Rico e voluntário na organização não governamental Casa Pueblo, fez estudos, validados por outros especialistas, sobre a contaminação militar em Vieques e como essas toxinas se transmitem às cadeias alimentares marinha e terrestre. Massol considera que há motivos para preocupação, mas recomenda realizar mais estudos.

“Os solos de Vieques poderiam ser seguros para a agricultura, ou não. Não está claro”, esclareceu Massol à IPS. Ele também afirmou que o governo porto-riquenho tem o dever de realizar estudos nos solos para constatar se há algum tipo de perigo tóxico. Por seu trabalho com o povo de Vieques e no movimento de protesto contra a marinha dos Estados Unidos, a Casa Pueblo ganhou o prestigiado Prêmio Ambiental Goldman, em 2002. Envolverde/IPS