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Os curdos na Síria têm sua primeira e singular televisão

Rudi Mohamed, apresentador da Ronahi TV, instantes antes de entrar ao vivo. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Rudi Mohamed, apresentador da Ronahi TV, instantes antes de entrar ao vivo. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Qamishli, Síria, 1/7/2014 – “Roj bas, Curdistão” (Bom dia, Curdistão), saúda Rudi Mohamed os telespectadores, com a presença de um jornalista veterano. Mas o certo é que quase ninguém nessa emissora de televisão tinha alguma experiência em comunicação antes da guerra. Após o levante na Síria, em 2011, os curdos do país – entre três e quatro milhões, segundo a fonte – optaram pela neutralidade, até que, em julho de 2012, o presidente sírio, Bashar Al Assad, se retirou dos enclaves curdos no nordeste do país.

A relativa estabilidade na zona desde então possibilitou um grande número de iniciativas civis impensáveis durante décadas. A língua curda pôde ser ensinada pela primeira vez nas escolas e começaram a ser impressos jornais e revistas nesse idioma, depois que os Assad proibiram seu uso, primeiro Hafez (1971-2000) e depois seu filho Bashar. Inclusive são produzidos programas de televisão, graças ao canal Ronahi TV. Seu nome significa “luz”, em curdo.

Os avanços são significativos mas o dia a dia nesta parte do mundo continua inevitavelmente ligado ao conflito. “Eu estudava engenharia do petróleo na Universidade de Homs, mas voltei para casa, em “Qamishli, 600 quilômetros a nordeste de Damasco, quando a guerra começou”, lembrou Reperin Ramadan, operador de uma das três câmeras no estúdio.

Esta é uma região rica em petróleo. Se tivesse concluído seus estudos, poderia ter conseguido um trabalho na refinaria de Rumelan, cem quilômetros a leste de Qamishli, contou Ramadan a IPS. A refinaria permanece sob controle curdo desde 1º de março de 2013, mas a produção continua interrompida por causa da guerra. Além disso, a cidade universitária onde estudou foi devastada, por isso o jovem diz que descartou “de vez” retomar os estudos.

Uma vez encerrado o programa, Perwin Legerin, de 28 anos, diretora da rede, ajuda a desembalar caixas de lâmpadas para o estúdio, enquanto dá detalhes da iniciativa à IPS. “Somos um grupo de 250 voluntários e recebemos entre US$ 30 e US 90 por mês, dependendo das necessidades de cada um. O financiamento chega de contribuições particulares de curdos, tanto daqui quanto da diáspora”, contou.

Ela explicou que Qamishli abriga a sede principal do canal, mas também há escritórios em Kobani e Afrin, os outros dois enclaves curdos no norte da Síria. “Ainda precisamos de muito mais equipamento técnico para trabalharmos nas condições adequadas, porque tanto Ancara quanto Erbil (a capital administrativa da região do Curdistão iraquiano) bloquearam todo fornecimento à região na fronteira”, afirmou. A diretora admite que o atual levante sunita nas limítrofes províncias ocidentais do Iraque são constitui “uma nova ameaça às aspirações curdas”.

Apesar das dificuldades, a emissora consegue transmitir sete dias na semana em três línguas: curdo, árabe e inglês. Há entrevistas com os cada vez mais numerosos agentes sociais, bem como com representantes políticos e militares, documentários e funerais de soldados curdos. Mas também transmite uma boa dose de música tradicional como contraponto à guerra. E as notícias da frente de batalha preenchem uma grande parte da programação.

Porém, nem todos aqui estão satisfeitos com a emissora. Setores da oposição curda acusam a Ronahi de estar intimamente ligada ao Partido da União Democrática (PYD), dominante entre os curdos na Síria. “Absolutamente, não estou de acordo”, afirmou Legerin. “Cobrimos histórias por todos os ângulos e todos os povos de Rojava (nome que os curdos locais dão à sua área) e Síria. Agora, não há muito que possamos fazer se alguém não aceita o convite para vir ao estúdio”, afirmou.

Certamente, a política curda na Síria é um tema espinhoso. A maioria dos partidos opositores está apoiada por Massoud Barzani, presidente da Região do Curdistão do Iraque e líder do Partido Democrático do Curdistão (PDK), enquanto outros três são apoiados pela União Patriótica do Curdistão (UPK), de Jalal Talabani. O PYD nunca escondeu que compartilha da ideologia do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Nas palavras de Salih Muslim, copresidente do PYD junto com Asia Abdullah, a Rohani é “um espelho da sociedade em Rojava e passou a fazer parte da vida das pessoas”.

No momento, as forças curdas na Síria continuam combatendo tanto com as forças governamentais quanto com as da oposição. Sozan Cudi é testemunha disso. Esta jovem militar era uma estudante secundarista quando a guerra começou. Atualmente faz um curso de edição de vídeo na emissora, duas horas por dia, três dias por semana. A direção da emissora destaca que os cursos de formação são “abertos e acessíveis a qualquer pessoa”. A soldado de 20 anos, membro da YPJ (Unidades de Proteção da Mulher, em curdo), contou que “viemos por ordem expressa de nossos comandantes”.

A YPJ está filiada à YPC (Unidades de Proteção Popular), um corpo militar de aproximadamente 45 mil combatentes espalhados por todas as regiões curdas da Síria, bem como nos bairros curdos da cidade de Alepo, a 300 quilômetros de Damasco. “Estou disposta a empunhar um fuzil para lutar contra nossos inimigos, ou uma câmera para mostrar suas atrocidades”, destgacou Cudi antes de entrar para a aula.

Serekaniye, 570 quilômetros a nordeste de Damasco, é uma das localidades que sofreram um alto grau de violência nos últimos dois anos. Abas Aisa, um dos produtores da Rohani, fugiu a tempo desse povoado da fronteira com a Turquia, onde extremistas islâmicos teriam chegado vindos da Turquia para combater os curdos e sufocar seu projeto de autonomia.

“Nossa pequena aldeia tinha uma população mista de árabes e curdos, mas muitos fugiram e o lugar está sob o controle de grupos jihadistas”, contou à IPS o produtor, cuja família é árabe. “Meus pais ainda estão na aldeia e não posso deixar de pensar neles e em sua segurança”, ressaltou Aisa, que duvida que possa voltar para casa num futuro próximo. Até lá, assegurou, lutará para que a Ronahi continue chegando até os seus a cada dia. Envolverde/IPS