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O Sul tem um modelo democrático próprio no Brasil, Índia e África do Sul

As redes ferroviárias da África seguem pouco desenvolvidas e só atendem 10% das necessidades do transporte. Um trem cruza o deserto de Namib desde o porto namíbio de Walvis Bay até a região rica em urânio de Erongo. Foto: Servaas van den Bosch/IPS
As redes ferroviárias da África seguem pouco desenvolvidas e só atendem 10% das necessidades do transporte. Um trem cruza o deserto de Namib desde o porto namíbio de Walvis Bay até a região rica em urânio de Erongo. Foto: Servaas van den Bosch/IPS

 

Washington, Estados Unidos, 26/5/2014 – Um governo democrático oferece uma opção viável aos países em desenvolvimento para conseguir um crescimento econômico e a inclusão, mas o Sul não tem motivo para seguir o modelo do Norte, sugere um novo estudo. Índia, Brasil e África do Sul (que formam o bloco Ibas) demonstram a maneira como países etnicamente diversos com setores de população muito pobres podem alcançar grandes avanços em seu desenvolvimento graças ao sistema democrático.

Um documento conjunto, apresentado em Washington no dia 19, sugere que esses exemplos representam uma alternativa democrática vinda do Sul. O projeto conjunto Democracy Works (A Democracia Funciona) também se distancia do debate político sobre os benefícios dos sistemas autoritários, uma tendência que havia se fortalecido após a crise financeira mundial iniciada em 2008.

Chave nessa discussão é o caso da China, cujo governo consegue altos níveis de crescimento, mas sem tirar da pobreza centenas de milhões de pessoas. Esse país integra junto com a Rússia outro bloco onde estão os três países do Ibas, conhecido como Brics.

“O que me interessa desse assunto é que o debate internacional sobre isso é muito real”, disse Anne Applebaum, editora do projeto, na apresentação do informe em Washington. “Há alguns dias, o presidente do Egito disse que ‘não podemos ter esse estilo ocidental de democracia. simplesmente não funcionará’. A questão é que, para mais países do que se imagina, parece existir uma dicotomia. Você pode escolher ser Suécia, por um lado, ou China”, acrescentou.

O Democracy Works funciona com a colaboração do Instituto Legatum, de Londres, do Centro para o Desenvolvimento e a Empresa, de Johannesburgo, do Centro de Pesquisa Política, de Nova Délhi, e do Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade, do Rio de Janeiro. O projeto destaca os países Ibas como exemplos do Sul onde a democracia funciona, mas também parte do princípio de que a gestão democrática não é melhor nem pior do que os regimes autoritários quanto ao desenvolvimento econômico.

“Sabemos por diversos estudos empíricos que a democracia, como forma de governo, não ajuda nem prejudica o desenvolvimento econômico”, afirmou Ted Piccone, especialista em política externa do centro de estudos Brookings Institution, de Washington. “A única vantagem das democracias é evitar os grandes vaivéns que se vê nos Estados não democráticos, com altos e baixos, e esses períodos baixos podem desencadear fome, violência, conflitos”, disse à IPS.

Para Piccone, “em geral, há mais competição aberta em torno do poder político, e isso dá à comunidade de investidores ou de negócios maior previsibilidade e confiabilidade”. Apesar de suas acentuadas diferenças, Índia, Brasil e África do Sul são consideradas atualmente democracias estáveis, e cada uma experimentou um crescimento forte que beneficiou grande número de pessoas.

“Esses três países demonstram que é possível um país ser etnicamente e socioeconomicamente dividido, desigual e relativamente pobre, e, no entanto, manter a democracia”, apontou Applebaum. “A democracia confere algumas vantagens, como direitos humanos, liberdade de imprensa e de expressão. E, tendo todas essas coisas, pode-se ter, ao mesmo tempo, desenvolvimento econômico”, acrescentou.

Dos três países, a África do Sul é a democracia mais jovem, porque realizou suas primeiras eleições livres em 1994, quando chegou ao poder o Congresso Nacional Africano, que instituiu reformas para mitigar os desequilíbrios raciais em termos de emprego e propriedade da terra. Ao sistema democrático é atribuída uma participação política mais pluralista do que a vivida durante o regime racista do apartheid (1948-1992). Enquanto isso, o índice de pobreza sul-africana diminuiu, sobretudo na última década, segundo variadas formas de cálculo desse indicador.

O Brasil recuperou a democracia em 1985, após 21 anos de ditadura militar, embora desde então seu crescimento econômico tenha sido errático. Porém, a tendência geral de crescimento econômico e sólidas políticas sociais permitiram o aumento do investimento, a expansão da produtividade e a redução da desigualdade na renda, afirmaram analistas do Democracy Works.

Por último, a Índia, um dos maiores e mais pluralistas do mundo, é uma democracia estável desde 1950, e o Índice Democrático da revista The Economist a situa em 38º lugar em uma amostra de 165 Estados. Em 1991, a Índia liberalizou muitos aspectos de sua economia, o que gerou preocupação social, mas também permitiu um crescimento econômico de 8,5% até 2010, embora o índice tenha caído a partir desse ano. A expansão e a riqueza também se estenderam aos setores mais marginalizados da sociedade.

A Índia também é um exemplo positivo de governo de coalizão, o que desmente a ideia de que as coalizões tendem a desacelerar o crescimento econômico. Além disso, a ampliação da tomada de decisões traz consigo importantes benefícios secundários, já que as democracias podem crescer mais lentamente, mas também de maneira mais equitativa.

Por exemplo, no Brasil, entre 1990 e 2010, o produto interno bruto por habitante cresceu de aproximadamente US$ 5 mil para US$ 12 mil. Nesse mesmo período, o indicador da desigualdade conhecido como coeficiente Gini, no qual zero é a igualdade total, caiu de 0,60 para 0,53. Tendência oposta observa-se na China. Desde 1980, pouco depois de o país aplicar reformas econômicas, o coeficiente Gini cresceu de 0,3 para 0,55.

“As democracias estão melhor equipadas para lidar com as desigualdades”, afirmou Piccone. “Não é de forma automática, sem dúvida existem altos níveis de desigualdade no Ibas e nos Estados Unidos, por isso é uma opção política. Mas ao menos é uma opção e permite que aconteça o debate e a mudança das políticas”, ressaltou.

Na verdade, nos países Ibas persistem obstáculos importantes, inclusive crescentes. Os analistas alertam que a corrupção oficial prejudica a eficácia das políticas públicas, enquanto outros sugerem que os planos de redistribuição da riqueza devem equilibrar-se melhor com os princípios macroeconômicos.

Os autores do Democracy Works recomendam que ter mais democracia, e não menos, é a solução. Por exemplo, o fortalecimento das instituições e dos mecanismos de controle para reduzir a corrupção – afirmam – melhoraria a eficácia das políticas sociais públicas, ao garantir que os recursos cheguem realmente aos mais pobres.

O documento analisa um site da Índia que permite às pessoas denunciarem casos de suborno nos serviços estatais. Um departamento de transporte foi denunciado com tanta frequência que seu encarregado convocou os empregados da página na internet para apresentarem suas conclusões ao pessoal do organismo, na tentativa de reduzir a quantidade de subornos. Quando na China surgiu uma página semelhante na internet, o governo a fechou em poucas semanas.

“As democracias não são apenas uma ferramenta fundamental para conseguir melhor desenvolvimento, mas são boas por si mesmas”, afirmou Piccone. “Isso é o interessante do Ibas, cujos integrantes tiveram resultados econômicos muito bons e atenderam muito bem seus cidadãos, incluindo o acesso aos serviços de saúde, à educação, maior expectativa de vida, menor mortalidade infantil, etc.”, assegurou. “Não é certo que o Sul em desenvolvimento deva seguir o modelo autoritário. Essas democracias podem crescer e atuar. O crescimento pode não ser tão dramático, mas os momentos ruins o são”, acrescentou. Envolverde/IPS