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O Brasil se coloca à frente da governança da internet

 

 

“Nós saímos do Facebook”, escreveram, como forma de apresentação, duas jovens participantes dos maciços protestos que ocorreram no Brasil em 2013. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

 

São Paulo, Brasil, 25/4/2014 – Enquanto era inaugurada, no dia 22, na cidade de São Paulo, uma conferência internacional para a reforma da internet, o Senado brasileiro aprovou o marco civil para o funcionamento da rede mundial de computadores no país, sancionado no dia seguinte pela presidente Dilma Rousseff. O tema do primeiro painel do encontro NETMundial foi precisamente Marco Civil da Internet e Mobilização, e os apresentadores e o público interromperam os debates para aplaudir a decisão brasileira, inédita e com potencial de se converter em modelo global.

Segundo o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, a elaboração desse marco inovou “não apenas em seu conteúdo, mas em seu método”, pois contou com a ativa participação da sociedade e dos ativistas digitais. “Houve mais de duas mil contribuições, e uma boa parte delas foi aceita”, afirmou. Em sua opinião, trata-se de “uma carta de direitos e um novo conjunto de relações que acaba com vários preconceitos”. O primeiro se refere à necessidade, ou não, de regular a internet. Os que antes duvidavam se convenceram da urgência de fazê-lo em um mundo cada vez mais determinado pelas relações digitais, pontuou o ministro.

Para Ronaldo Lemos, diretor do sistema de licenciamento aberto Creative Commons no Brasil e professor da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas, o país “está assumindo a liderança de uma discussão complexa”. O Marco Civil é vanguardista, pois contempla a neutralidade, o multissetor e a liberdade da internet, afirmou Lemos na conferência, ressaltando que “a rede não será regulada pelo governo, mas por todos os setores da sociedade”.

Em sua opinião, os Estados Unidos perderam terreno nesse processo devido à espionagem global montada por sua Agência Nacional de Segurança, que foi denunciada em meados de 2013 pelo ex-agente de inteligência Edward Snowden. “A responsabilidade pelos avanços recaiu sobre o Brasil”, destacou Lemos. A motivação para realizar a conferência de três dias, encerrada ontem, “apareceu justamente depois das denúncias de Snowden”, disse aos jornalistas Virgílio Almeida, um dos coordenadores da NETMundial e secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência e Tecnologia.

Em setembro do ano passado, a presidente Dilma protestou contra a espionagem, que afetou interesses estratégicos do Brasil, perante a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) e pediu a adoção de um mecanismo de governança da internet com princípios globais. A NETMundial, que recebeu 188 contribuições de 46 países, tem dois objetivos: discutir a governança da internet e pensar as modificações para o setor. Esses dois pontos contemplam a privacidade, a inviolabilidade, o direito de discussão e de associação.

O secretário-executivo do Serviço Federal de Processamento de Dados, Diogo de Sant’Ana, recordou à IPS que, em um país onde cem milhões de pessoas – metade da população – estão conectadas à internet, há avanços importantes. Nada menos do que 85% das compras do setor público são feitos via internet e os 27 milhões de pessoas que declaram imposto de renda o fazem pela internet, o que é inédito no mundo, ressaltou.

Beá Tibiriçá, diretora do Coletivo Digital, aproveitou para enviar uma mensagem ao prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, presente na conferência. “São Paulo sempre foi vanguarda, prefeito. É hora de reabrir todos os telecentros da cidade”, disse Tibiriçá à IPS. Desde o começo deste ano, as autoridades municipais fecharam 46 desses centros públicos de acesso à internet por diversas irregularidades.

As conquistas da sociedade plasmadas no Marco Civil não extinguem a luta pela segurança e a transparência, afirmou Daniela Silva, uma das articuladoras da Transparência Hacker, comunidade que combate a falta de transparência e promove a participação política. Ela acrescentou que na conferência lhe coube fazer o papel de estraga-festa e “baixar o volume da música no melhor da dança”, pois afirmou que há um imenso “buraco negro” no Poder Legislativo, que torna muito difícil conhecer e acompanhar cada emenda apresentada pelos legisladores.

Além disso, a meta agora é tentar revogar o artigo 15 do Marco Civil, que abre brechas para violar a privacidade, disseram Daniela e outros participantes. Segundo os críticos, esse artigo viola a privacidade dos usuários porque estabelece que os provedores deverão guardar os registros de acessos durante seis meses.

O professor da Universidade Aberta da Catalunha, na Espanha, Manuel Castells, disse que, como as instituições formais não são capazes de atender as novas demandas, os novos desejos e sonhos da população, existe uma tendência natural a iniciar manifestações na rede, como ocorreu no ano passado no Brasil e na Turquia. Mas o ativismo não acaba na internet, pontuou. Ao contrário. Há um amadurecimento das demandas na rede mundial, que vão aumentando exponencialmente e resultam, para surpresa de muitos, em milhares de pessoas protestando nas ruas. “A classe política não pode se distanciar da sociedade. Não se trata de tomar o poder, mas de dissolver o poder”, alertou.

Javier Toret, um dos articuladores do movimento cívico espanhol 15M, afirmou que a força das redes sociais forçou inclusive os meios de comunicação tradicionais, como os grandes jornais e emissoras de televisão, a informar sobre os protestos que a princípio eram ignorados. Segundo um estudo desse movimento, os chamados pela internet mobilizaram 40% dos manifestantes no Brasil, 29% na Espanha, 25% na Turquia e 39% no Egito, o que não é nada desprezível.

A mexicana Laura Murillo, representante do movimento estudantil Yo Soy 132 (Eu Sou 132), assegurou que em seu país tramita uma lei regressiva para regular a internet. O projeto permite o bloqueio, sem ordem judicial, de conteúdos da rede, não garante a privacidade dos usuários e obriga as empresas a armazenarem dados dos internautas por dois anos, aos quais o governo pode ter acesso a qualquer momento, detalhou. O mais grave, enfatizou, é que as autoridades poderiam bloquear o acesso à internet em certas regiões e por tempo indeterminado. Envolverde/IPS

* Márcia Pinheiro é jornalista da Envolverde.