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“Este não é o mundo proposto por Samuel Huntington”

Harald Müller. Foto: Cortesia do entrevistado
Harald Müller. Foto: Cortesia do entrevistado

Nações Unidas, 14/10/2013 – A polêmica teoria do “choque de civilizações”, que está completando 20 anos, explica as relações internacionais e os conflitos violentos segundo uma lógica de bons e maus, apontou o especialista alemão Harald Müller. “É errônea, mas satisfaz as necessidades básicas”, afirmou Müller, diretor-executivo do Instituto de Pesquisas para a Paz de Frankfurt (Prif).

Em 1993, Samuel Huntington, então professor na Universidade de Harvard, escreveu um artigo para a revista Foreign Affairs, que depois se converteu no livro O Choque de Civilizações e a Reconfiguração da Ordem Mundial. Nele dividiu o mundo em oito civilizações, “definidas tanto por elementos objetivos comuns, como idioma, história, religião, costumes e instituições, como pela autoidentificação subjetiva das pessoas”.

Segundo Huntington, depois da Guerra Fria as diferenças culturais seriam o principal motor de conflagrações e conflitos. Em entrevista à IPS, Müller explicou o motivo pelo qual a teoria de Huntington ganhou tanta força, apesar de ser inadmissível.

IPS: A introdução da edição especial da Foreign Affairs pelo 20º aniversário da obra de Huntington afirma que o poder de uma teoria é sua escala, intensidade e qualidade do debate que gera. E diz que o livro é uma das contribuições teóricas mais poderosas das últimas gerações. Em sua opinião, o que determina uma boa teoria política?

HARALD MÜLLER: Obviamente, há diferença entre uma “teoria poderosa” e uma academicamente “boa”. Uma teoria é “poderosa” quando toca a sensibilidade pública sobre um assunto de grande destaque no momento de sua publicação. Se é fácil de ser captada, suficientemente simples para ser entendida por uma grande quantidade de pessoas, e se vem acompanhada de um bom trabalho de venda, pode ganhar uma força considerável. Porém, não é necessariamente uma boa teoria. O darwinismo social foi muito poderoso no final do século 19 e no começo do 20, mas do ponto de vista científico foi uma teoria bastante ruim.

IPS: Muitos analistas afirmam que as reflexões e os postulados de Huntington tocaram um tema sensível.

HM: Ele tocou um tema sensível porque apresentou uma teoria simples e abrangente da política mundial no momento em que os povos do Ocidente haviam perdido as coordenadas estabelecidas pela estrutura simples, bipolar e antagônica da Guerra Fria. Ele voltou a dizer a esses povos quem eram (ocidente) e quem era o inimigo (a imponente coalizão sino-islâmica). Na verdade, sua conjectura foi um reflexo da Guerra Fria, ao projetar uma coalizão contrária a esse inimigo, na qual as culturas “hinduísta”, “ortodoxa” e “latina” se somariam em massa ao Ocidente, porque o gigante sino-islâmico parecia muito mais ameaçador.

IPS: Huntington sugeriu que os conflitos mais importantes se manifestariam a partir das divisões existentes entre essas civilizações. Ao olhar os conflitos mundiais da atualidade, em que medida acredita que importam as variáveis culturais?

HM: Como muitos observadores já apontaram, muitos conflitos ocorrem dentro das “civilizações” de Huntington, principalmente dentro do Islã: xiitas versus sunitas, sunitas versus alauitas, os clãs na Somália, etc. Em outros conflitos, a causa básica não é cultural, como as questões climáticas que ocorrem no Sahel e que colocam em confronto pastores nômades e agricultores, ou em conflitos territoriais clássicos – Israel versus Palestina, Índia versus Paquistão –, que não estouraram entre grupos que já eram culturalmente distintos enquanto a questão territorial não era o mais importante, por exemplo, durante os impérios otomano e britânico. Em termos gerais, os fatores culturais – religião e condição étnica – exacerbam conflitos existentes por diferentes motivos. Raramente são a causa desses conflitos.

IPS: Em seu livro Coexistência de Civilizações: As Antípodas de Huntington, o senhor avalia se a teoria do choque é coerente e científica.

HM: Nem a história nem a maioria das obras sobre civilização e cultura apoiam a ideia de civilização de Huntington. Sua descrição do Islã como uma cultura desproporcionalmente violenta ignora que a maioria dos países muçulmanos está rodeada por muitas outras “civilizações” e têm, portanto, muito mais ocasiões de “se chocar” do que o restante. É um simples caso de “controlar fronteiras”, na linguagem estatística. Ele deprecia os mecanismos políticos de segurança nacional, pelos quais os países que aspiram construir hegemonias regionais costumam ser vistos com desconfiança por seus vizinhos, que então buscam aliados extrarregionais como contrapeso. Também ignora que, quanto mais central se torna a religião na formação da identidade política, mais fortes serão as consequências da cisão e mais prováveis e frequentes os choques intraculturais, com o de sunitas e xiitas. Além do mais, Huntington seleciona apenas as forças divisórias da diversidade, e esquece as forças vinculantes da globalização. Em conjunto, é uma construção parcial e viciada, que desatende as contribuições da história, da antropologia, da etnologia, da sociologia e de algumas outras disciplinas.

IPS: A partir das experiências de conflitos recentes, vê algum motivo para reconsiderar sua análise?

HM: Não. Sinto-me bastante cômodo com o que escrevi. Inclusive o próprio Huntington negou que o 11 de setembro (de 2001, data dos atentados em Nova York e Washington, com mais de três mil mortos) tenha sido um caso de “choque de civilizações”. A maioria das vítimas da Al Qaeda é de muçulmanos, e a coalizão anti-Al Qaeda é uma impressionante coleção de todas as culturas do mundo. Seria ainda mais impressionante sem a extraordinária inaptidão e visão pequena do governo (de George W. Bush, 2001-2009), que não aproveitou a onda de empatia gerada pela comoção em Nova York e Washington, e afastou boa parte da população mundial que inicialmente demonstrou solidariedade aos Estados Unidos. Uma grande rivalidade de poderes volta a estar em cena como força que molda a política mundial. A democracia segue seu avanço lento, mas aparentemente irresistível, que, no entanto, não nos leva a uma “liga de democracias”, pois os Estados democráticos no Sul global mantêm suas identidades de ex-colônias, com visível desconfiança diante das intenções e dos objetivos dos antigos poderes coloniais. Em lugar de uma convergência de dois blocos civilizatórios, vemos mais alinhamentos vacilantes e diversos do que antes. Esse não é o mundo de Huntington. Envolverde/IPS