Arquivo

Na Argentina crescem sinais de uma guerra pela água

O Dique La Quebrada, a sete quilômetros de Río Ceballos, com a represa no nível histórico mais baixo de água. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
O Dique La Quebrada, a sete quilômetros de Río Ceballos, com a represa no nível histórico mais baixo de água. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

 

Río Ceballos, Argentina, 6/12/2013 – Com poucas perspectivas de solução no curto prazo, a província argentina de Córdoba começa a viver o que parece um enredo futurista: falta de água nas torneiras, racionamentos, denúncias entre vizinhos e esperar que chova. O problema se estende por toda a província, mas é mais evidente em sua área mais habitada, a capital de mesmo nome, a região de Sierras Chicas e o sul de Punilla.

Ali, quando as chuvas escasseiam, baixa o nível das represas que fornecem água. Alguns municípios serranos apelam para o racionamento, como Río Ceballos, localidade de 30 mil habitantes, 30 quilômetros ao norte da capital. A represa do Dique La Quebrada, que a abastece, atingiu seu menor nível histórico, com 13,5 metros abaixo da cota de deságue. A prefeitura estabeleceu cortes programados de fornecimento de 12 horas, duas vezes por semana.

“É algo que se podia esperar”, disse à IPS um dos moradores, Omar Vergara, que tem uma coleção de baldes espalhados pelo quintal de sua casa para coletar água de chuva e usá-la para regar as plantas e limpar o chão. Como outros, lava seu automóvel “só com baldes” e reutiliza a água “menos suja” de sua lavadora e deixa a potável para beber e cozinhar.

Lavar a calçada com mangueira provoca denúncias entre vizinhos. A água é mais cara para consumo maior. Mas, ainda assim não é bem visto, por exemplo, encher as piscinas dessa pequena e aprazível cidade, onde vieram viver muitos antigos moradores da próxima Córdoba, por seu ar puro e melhor qualidade de vida. Uma linha telefônica recebe denúncias de “desperdício de água” 24 horas por dia.

A Cooperativa de Obras e Serviços Río Ceballos distribui a água residencial e também ajuda a conscientizar sobre sua economia. Seu gerente, Miguel Martinesi, contou à IPS que o consumo por pessoa caiu de 270 para 170 litros diários, enquanto na capital da província é de 400 litros por habitante. “Há um controle permanente. Os moradores se vigiam: não regue, não lave o carro, não lave a calçada”, pontuou.

“Vivemos uma situação de emergência” desde 2005, disse à IPS o intendente (prefeito) de Río Ceballos, Sergio Spicogna, que atribui a crise de água à redução das chuvas e a um crescimento explosivo da população, após a construção de uma nova rodovia que une o município a Córdoba. Antes, esse dique a apenas sete quilômetros da localidade abastecia também dois municípios vizinhos, Unquillo e Mendiolaza, com 40 mil habitantes em conjunto, “O que tornava muito mais problemática a situação”, acrescentou.

Mas, foi feita um transvase desde a represa que abastece a capital, o Dique San Roque, e desde ali as duas localidades recebem água, mediante o aqueduto de 30 quilômetros, que se planeja estender até Río Ceballos. As autoridades provinciais projetam outras alternativas de abastecimento para a capital de Córdoba, para que o excedente de San Roque flua para Sierras Chicas. Porém, segundo Spicogna, são planos muito caros e dependem de uma “sinergia” entre os municípios, a província e a nação.

Além disso, segundo o diretor da organização ambientalista Projeto de Conservação e Reflorestamento das Serras de Córdoba, Ricardo Suárez, o quebra-cabeça dos transvases não é a solução. “Trazer água do Dique San Roque é um problema, porque, apesar de maior do que o de La Quebrada, também está abaixo de sua cota normal e com uma população para abastecer muito maior, e que continuará crescendo”, destacou. “As obras sempre foram feitas tardiamente, o consumo cresce em ritmo muito maior do que o das obras que se faz, e a natureza tem um limite”, acrescentou.

Na província de Córdoba, a segunda mais povoada da Argentina, a média anual de chuva é de 779 milímetros e a redução da floresta nativa aumentou a evaporação da água de chuva, por falta de massa florestal que a retenha. Aos poucos, “esse sistema semiárido se transformou quase em árido, com a tendência a se transformar em deserto. Sabemos muito bem que uma das características do deserto é carecer de água”, alertou Suárez.

Córdoba tem o maior desmatamento da Argentina. Só restam 5% dos 12 milhões de hectares de floresta nativa que a província tinha no começo do século 20. Os incêndios ocorridos entre agosto e setembro devoraram 40 mil hectares, a maioria em florestas e pastagens serranas. “Entre 1998 e 2002, se desmatou em Córdoba o equivalente a 67 campos de futebol por dia, um número aterrador”, enfatizou à IPS o presidente da Fundação para a Defesa do Meio Ambiente, Raúl Montenegro.

O fogo e o desmatamento indiscriminado pioraram o funcionamento de suas principais bacias hídricas. “Entraram em colapso as fábricas de água”, resumiu o biólogo. A “aceleração mais violenta” do desmatamento ocorreu na década de 1990 e coincidiu com a introdução de cultivos transgênicos de soja, milho e algodão, entre outros, que também impulsionaram o consumo de água, detalhou Montenegro. “Para produzir um quilo de grão de soja são necessários entre 1,5 e dois mil litros de água, e em terras áridas uma quantidade maior”, acrescentou.

“Muitos acreditam que a maior parte da superfície da província pode dedicar-se a agricultura, pecuária e plantio de árvores estrangeiras, e que os diminutos parques e reservas criados pelos governos são suficientes para conservar nossos ambientes nativos”, comentou Montenegro. “É dramaticamente falso. Não há futuro nem estabilidade ambiental sem a coexistência equilibrada de ambientes naturais e produtivos”, concluiu.

A construção de condomínios, indústrias e grandes complexos turísticos também impulsiona o desmatamento da província, que contribui com 8% do produto bruto argentino. Por isso, para Suárez, a solução é um agressivo plano de reflorestamento e não apenas novas obras. “O Dique La Quebrada vai secar, é irreversível, porque a bacia está 85% desmatada. Os solos estão quase totalmente expostos”, ressaltou.

A organização de Suárez reflorestou, com voluntários e quase sem recursos, 40 hectares de floresta nativa, o que demorou 14 anos. “Se os planos de reflorestamento fossem sistemáticos, hoje a serra seria uma grande floresta nativa”, opinou. Martinesi apresentou outras soluções: “Temos que definir quais zonas queremos que cresçam, para poder lhes dar a infraestrutura necessária, e quais não queremos deixar crescer”, sugeriu. Do contrário, “o problema será grave” no médio prazo, alertou.

O responsável pelo fornecimento de água para Río Ceballos considera que as mudanças climáticas incidiram na crise hídrica, com prolongadas secas, agravadas pela degradação do ecossistema. “Entretanto, deveríamos resolver o tema da infraestrutura, ordenar o crescimento, aproveitar bem as fontes, para então poder dizer que estamos complicados pela falta de chuvas. Esperar que uma região cresça dependendo das chuvas é irresponsabilidade”, destacou. Envolverde/IPS