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Moçambique enfrenta o duplo problema do papiloma e do HIV

Este ano, Moçambique vacinou 8.500 meninas de dez anos contra o vírus do papiloma humano (HPV), causador do câncer de colo de útero. A imunização se estenderá gradualmente a todo o país. Foto: Mercedes Sayagues/IPS
Este ano, Moçambique vacinou 8.500 meninas de dez anos contra o vírus do papiloma humano (HPV), causador do câncer de colo de útero. A imunização se estenderá gradualmente a todo o país. Foto: Mercedes Sayagues/IPS

 

Maputo, Moçambique, 4/11/2014 – A moçambicana do leito 27, do setor de oncologia do Hospital Central de Maputo, não tem ideia da sorte que teve. Em janeiro, quando sentiu dores abdominais, o farmacêutico lhe recomendou analgésicos. Durante meses, “a dor passava e voltava”, contou à IPS. Em abril fez uma consulta médica na clínica de Matola, a 15 quilômetros da capital de Moçambique. As enfermeiras haviam concluído há pouco uma capacitação para detectar câncer de colo de útero. E encontraram nela um tumor invasivo e a enviaram ao Hospital Central de Maputo (HCM), e há dois meses começou a receber quimioterapia.

Quando a IPS a conheceu, havia terminado há pouco o terceiro mês de tratamento. Os médicos estavam otimistas. Ela se salvou graças a uma inovação introduzida nesse país: exames clínicos de rotina nos centros de saúde para detectar o câncer de colo de útero. “As mulheres buscam ajuda quando sentem dor, e a dor significa câncer em uma fase avançada”, explicou a enfermeira Mafalda Chissano. “Mas se vão ao ginecologista e fazem um teste de papanicolau demoram meses, além do tempo e do custo do transporte. Então já é muito tarde”, observou.

Moçambique tem a maior mortalidade e risco acumulado de câncer de colo de útero: sete em cada cem recém-nascidas podem desenvolver câncer e cinco morreriam em consequência. Além disso, é o segundo país em incidência dessa doença, depois do Malawi, segundo a coalizão África para a Saúde Materna, Infantil e de Recém-Nascidos.

A cada ano, 5.600 mulheres são diagnosticadas com câncer de colo de útero, das quais quatro mil morrem, resultando em 11 por dia. Não há radioterapia paliativa e é uma morte dolorosa. Esses números correspondem aos falecimentos registrados. Mas só metade dos moçambicanos tem acesso a serviços de saúde, por isso estima-se que morrem muitas sem diagnóstico.

O problema se agrava pela alta prevalência do vírus HIV, causador da aids, em um país onde um em cada dez habitantes é portador. As mulheres soropositivas têm maior risco de desenvolver câncer de colo de útero e a uma velocidade letal. “Quanto mais fraco é o sistema imunológico, mais rápido avança o câncer de colo de útero”, segundo o médico Amir Modan, do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) em Maputo.

Chissano, que trabalha com a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Alto Maé, uma clínica estatal de Maputo, onde a prevalência do HIV é de 20%, afirmou que uma em cada três mulheres soropositivas tem lesões pré-cancerosas ou câncer de colo uterino. O câncer de colo de útero é o mais frequente entre moçambicanas com idades de 15 a 44 anos, acrescentou Modan.

As autoridades sanitárias enfrentam o problema com campanha de informação e instauração de exames clínicos de rotina nos serviços de planejamento familiar. Já foram capacitadas cerca de mil enfermeiras, detalhou a doutora Aventina Cardoso, assessora da organização Jhpiego. “Mas a demanda e as necessidades superam nossos recursos”, lamentou.

Os dados da Jhpiego indicam que 10% das mulheres que fizeram exames clínicos tinham lesões pré-cancerosas e 5% desenvolveram a enfermidade. Uma das causas do câncer de colo de útero é o vírus do papiloma humano (HPV), de transmissão sexual. É comum e muita gente é portadora, mas muitas vezes permanece latente. Dos 40 tipos existentes, alguns são resolvidos de forma espontânea, alguns causam verrugas genitais e outros câncer.

Os fatores de risco do câncer de colo de útero incluem HIV, iniciação sexual precoce, doenças sexualmente transmissíveis, múltiplos parceiros sexuais, uso prolongado de anticoncepcionais, tabagismo e antecedentes familiares de câncer. As infecções pelo HPV duplicam o risco de contaminação pelo vírus da aids, e este, por sua vez, acelera o avanço do câncer de colo de útero. Outro fator de risco é o não uso de preservativos. Menos de um quarto das pessoas usa camisinha nas relações sexuais de risco, pontuou Modan, o que aumenta a exposição ao HPV e HIV.

Segundo a pesquisa demográfica de 2011, uma em cada três mulheres teve a primeira relação sexual antes dos 15 anos. A paciente do leito 27, que agora tem 52 anos, se casou aos 15 e teve sete filhos. As mulheres que chegam ao setor oncológico do HCM “têm muito medo”, disse Layne Heller, voluntária cristã do hospital. “Em seus povoados natais existe a crença de que vêm para morrer e têm pavor”, afirmou.

Um estudo, realizado por Cardoso na província de Zambezia, em 2010, mostra que metade das mulheres entrevistadas associavam o câncer de colo de útero com promiscuidade e 42% com bruxaria. Havia algo de certo quanto a morrerem, mas, graças à campanha lançada em 2013, a situação começou a mudar.

A iniciativa, lançada pela ex-primeira-dama, Maria da Luz Guebuza, saturou a mídia e todos os acontecimentos culturais, do dia das mães aos desfiles de moda. É fundamental reforçar o conceito de prevenção em saúde, assinalou Cardoso. “Não faz parte de nossa cultura”, reconheceu. “Só vamos ao hospital quando estamos doentes. Isso muda lentamente, na medida em que as pessoas se dão conta da importância de prevenir”, acrescentou.

A prevenção salva vidas

Este ano, em três distritos no sul, centro e norte de Moçambique, foram vacinadas 8.500 meninas de dez anos contra o HPV em um projeto-piloto. A vacina é administrada antes do início da atividade sexual, quando podem ficar expostas ao vírus. A terceira dose será aplicada este mês, informou à IPS a médica Khatia Munguambe, do Centro de Pesquisa em Saúde de Manhiça.

O próximo passo será ampliar o número de meninas imunizadas. Em 2015, serão vacinadas todas as nascidas em 2005, em Manhiça e Vila de Manhiça, no sul, e em Mocimboa da Praia, no norte.

A Jhpiego capacita enfermeiras e médicos para realizarem os exames clínicos com uma técnica inovadora, a inspeção visual com ácido acético. Antes se detectava o câncer de colo de útero com um exame de papanicolau ou citologia do colo uterino, que exigia pessoal especializado e caras análises de laboratório, que demoravam semanas por falta de técnicos.

Com a nova técnica, as enfermeiras passam acido acético ou vinagre branco no colo do útero e os tecidos lesionados ficam brancos. Elas estão treinadas para retirá-lo mediante criocirurgia e pedir uma biópsia e enviar a paciente ao médico. É fácil, rápido e barato. A detecção e o tratamento acontecem na mesma visita. Em contextos rurais e pobres, isso faz a diferença. Envolverde/IPS

Dados básicos sobre o câncer de colo de útero em Moçambique

  • 7,3 milhões de mulheres maiores de 15 anos podem contrair o HPV.
  • 820 mil mulheres portadoras de HIV têm um alto risco de contrair a enfermidade.
  • 5,6 mil mulheres recebem anualmente um diagnóstico positivo para câncer de colo de útero.
  • 4 mil mulheres morrem por ano devido a essa doença.
  • Uma em cada três mulheres é portadora do HPV.

Fontes: Onusida, OMS, CISM, Jhpiego.

Envolverde/IPS