Sociedade

A metade esquecida na luta contra a aids na África

Os homens lidam com dificuldade diante de um conceito de masculinidade que os leva a ignorar suas próprias necessidades de saúde em relação ao HIV. Foto: Mercedes Sayagués/IPS
Os homens lidam com dificuldade diante de um conceito de masculinidade que os leva a ignorar suas próprias necessidades de saúde em relação ao HIV. Foto: Mercedes Sayagués/IPS

 

Nairóbi, Quênia, 16/12/2014 – Quando se fala de desigualdade de gênero em relação à aids, a primeira coisa que vem à mente é que mais mulheres do que homens vivem com HIV. Mas outra diferença de gênero, poucas vezes mencionada, é tão letal para os homens soropositivos na África.

As pesquisas mostram que em toda a África os homens têm taxas menores do que as mulheres de realização do teste do vírus HIV (causador da aids), inscrição e adesão ao tratamento antirretroviral, supressão da carga viral e sobrevivência. “Os homens estão ficando atrasados no acesso à atenção e ao tratamento do HIV”, afirmou Safari Mbewe, diretor da Rede de Malawi de Pessoas que Vivem com HIV e Aids.

Em dezembro de 2012, os homens representavam apenas 36% da população que recebia tratamento com antirretroviral (TAR) na África, segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (Onusida). No Quênia, a última Pesquisa de Indicadores da Aids mostra que oito em cada dez mulheres fizeram o teste de HIV, contra seis em cada dez homens. Essa tendência se repete em todo o continente.

Em geral, se insiste mais nos riscos que sofrem os homens em relação ao HIV, como numerosas parceiras sexuais, sexo inseguro, abuso de álcool e violência, que deixam as mulheres mais vulneráveis ao vírus e menos na própria vulnerabilidade dos homens quanto ao péssimo cuidado com a saúde. As diferenças de gênero afetam negativamente a conduta dos homens com relação aos TAR, ressaltou a pesquisadora Morna Cornell, da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul.

Entre as pessoas com TAR, a mortalidade é 31% maior nos homens do que nas mulheres, segundo um estudo de Cornell. Sua conclusão é que a maioria das políticas relativas ao HIV/aids na África não levam em conta os homens e lhes falta “um compromisso verdadeiro com o acesso equitativo” ao tratamento.

O inspetor de polícia Ali Mlalanaro está vencendo a luta contra a aids graças à sua transparência. Foto: Amunga Eshuchi.
O inspetor de polícia Ali Mlalanaro está vencendo a luta contra a aids graças à sua transparência. Foto: Amunga Eshuchi.

 

No núcleo da disparidade estão ideias socialmente construídas da masculinidade, explicou Pierre Brouard, diretor do Centro para o Estudo da Aids na Universidade de Pretória, na África do Sul. “O gênero influi na saúde. A maneira como os homens veem a si mesmos e se posicionam em relação aos serviços de saúde afeta como encaram os testes e o tratamento do HIV”, apontou Brouard à IPS. Ser homem significa ser forte, ignorar a dor e os sintomas, adiar suas próprias necessidades de saúde, acrescentou.

Landry Tsague, especialista em HIV do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em Lusaka, capital de Zâmbia, concorda com Brouard. “Para muitos homens, os hospitais são apenas para as mulheres e crianças,. Assim, os homens fazem o teste do HIV e começam o TAR tardiamente, às vezes muito tarde para vencer o vírus”, afirmou.

Brouard pontuou que os homens sul-africanos são mais reticentes do que as mulheres em fazer o teste de HIV e, portanto, têm menos probabilidade de iniciar o TAR. Em 2012, cerca de 651 mil homens recebiam TAR contra 1,3 milhão de mulheres, segundo um estudo de 2012 realizado pelo Conselho de Pesquisa das Ciências Humanas da África do Sul.

Dismas Nkunda, membro em Uganda da Rede de Defesa da Saúde Reprodutiva para a África, explicou que as mulheres fazem exame pré-natal, quando é realizado o teste de HIV, e são mais propensas a acompanhar familiares ao hospital. “Os homens interagem menos com o sistema de saúde”, acrescentou.

A negação também tem a ver. “Os homens podem se convencer facilmente de que não têm o HIV, até a doença avançar para o último estágio”, destacou Diana Mswafari, ativista na Tanzânia. Um estudo que os Centros para o Controle e a Prevenção de Enfermidades, dos Estados Unidos, realizado em Moçambique, Suazilândia, Tanzânia, Uganda e Zâmbia investigou um grupo de pessoas durante quatro anos e meio de seu TAR.

O trabalho revelou que os homens começaram o TAR mais tarde e mais doentes, e têm maiores probabilidades de suspendê-lo por mais de 30 dias e de deixar o tratamento. “A adesão e a retenção dos homens ao tratamento é ruim em comparação com as mulheres, e isso está vinculado às normas sociais”, afirmou Tsague. Os homens também são menos propensos a participar de grupos de apoio que os ajudariam a manter-se no TAR, acrescentou.

Cornell afirma que a ênfase dada pelos serviços de saúde pública africanos à saúde materna e infantil, junto com o êxito das campanhas sobre a vulnerabilidade das mulheres em relação ao HIV, se desviaram das  necessidades dos homens. São “os 50% esquecidos, cujas necessidades nem sempre são secundárias frente às das mulheres e crianças”, ressaltou.

Os especialistas recomendam a criação de clínicas que atendam as necessidades dos homens, com horários e dias adequados para eles em razão do emprego formal ou informal. “Os homens se sentem deslocados ao fazerem fila junto com mães e bebês que choram. Precisam de seu próprio espaço”, segundo Msafari.

Para enfrentar o estigma, que é muito alto no Malawi e em outras partes da África, Mbewe sugere o recrutamento de “alguns homens que falem abertamente sobre ser soropositivo e recebam tratamento antirretroviral para formarem grupos de apoio”.

Alguns dados rápidos

  • Em Zâmbia, 63% dos adultos que começaram o TAR são mulheres.
  • Em Uganda e na Tanzânia, as mulheres abandonam o atendimento para HIV cerca de 12% menos do que os homens.
  • No Quênia, 65% das mulheres com TAR conseguiram a supressão viral, contra 47% dos homens.
  • No Quênia, 47% das mulheres e 33% dos homens aceitam as pessoas que vivem com HIV.

Fonte: Centros para o Controle e a Prevenção de Enfermidades, Estados Unidos

O inspetor da polícia que se atreveu a falar

Ali Mlalanaro, de 51 anos é inspetor de polícia no condado de Mombasa, a 441 quilômetros de Nairóbi, no Quênia. Suspeitava que poderia ter HIV desde 1994, mas só fez o teste em 1998, que deu positivo. O inspetor esteve relativamente bem até 2007, quando adoeceu gravemente e começou o TAR.

Mlalanaro opinou que as forças externas que afastam os homens das clínicas são tão poderosas quanto as internas. “Algo nos homens se nega a reconhecer uma doença até que esta começa a interferir com sua vida diária, e isso é especialmente certo para o HIV”, afirmou. “Como os homens não aceitam que exista algo mais forte do que eles mesmos que poderia matá-los, se perdem no álcool”, acrescentou.

Mlalanaro se integrou ao Soldados da Esperança, um grupo de apoio de HIV, que “me deu o valor de compartilhar o que acontecia comigo. Tornar pública minha situação foi difícil, mas, ao fazê-lo, é como se tivesse ganho metade da batalha”. Envolverde/IPS