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Mercados pregam os cravos da Revolução

Marcha pela Avenida da Liberdade, em Lisboa, em defesa dos ideais da Revolução dos Cravos. Foto: Daniel Mário/IPS

Lisboa, Portugal, 26/4/2012 – Pela primeira vez em 38 anos, os militares, que abriram as portas para a democracia em Portugal, não participaram dos atos oficiais comemorativos da Revolução dos Cravos, que derrubou a que na época era a mais antiga ditadura europeia. No ato, designado Dia da Liberdade, os militares que dirigiram o golpe de 25 de abril de 1974 se recusaram a ocupar a tribuna de honra, que anualmente lhes é destinada no parlamento, em protesto pela “ditadura dos mercados financeiros” que afronta o país.

Esses oficiais decidiram comemorar a data convocando uma manifestação na qual se destacaram vários cartazes e discursos contra a crise econômica e financeira. A manifestação ocupou a central Avenida da Liberdade e terminou com uma concentração que lotou a grande Praça do Rossio, principal área pública de Lisboa. O protesto de ontem foi apoiado pelo ex-presidente Mário Soares (1985-1995), considerado o patriarca da democracia portuguesa, que também se recusou a ocupar o lugar de honra no semicírculo unicameral de São Bento, destinado aos ex-chefes de Estado.

O coronel da reserva Vasco Lourenço, que com a patente de major era comandante da Região Militar de Lisboa no período revolucionário, explicou que os militares não participaram dos atos oficiais porque “a linha seguida pelo poder político atual deixou de refletir o regime democrático herdado em 25 de abril de 1974, plasmado na Constituição da República”. Lourenço preside a Associação 25 de Abril, formada pelos militares da reserva e da ativa, protagonistas do golpe de Estado que derrubou a ditadura corporativista do “Estado Novo”, que governou Portugal com mão de ferro entre 1926 e 1974.

Há alguns meses, os militares protagonistas da Revolução, procedentes de todas as correntes de opinião, fustigam o governo por colocar em xeque praticamente todos os êxitos daquela ação libertária. Os chamados “capitães de abril” não foram ao parlamento, mas não deixaram de comemorar o levante que pôs fim a um regime de extrema direita isolacionista e a um império colonial de quase 560 anos.

O ditador Antônio de Oliveira Salazar (1889-1970), o professor de finanças da Universidade de Coimbra fundador do “Estado Novo”, governou até 1968 com mão de ferro, ao mais puro estilo conservador-provinciano, como se fosse o quintal de sua casa da aldeia natal de Santa Comba do Dão. Foi substituído por incapacidade por seu “delfim”, Marcello José das Neves Caetano.

Tudo começou a mudar radicalmente nas primeiras horas da madrugada de 25 de abril de 1974, quando o jovem capitão Fernando José Salgueiro Maia (1944-1992), destituiu seus superiores do Regimento de Cavalaria Mecanizada de Santarém e à frente de uma longa coluna de carros de combate percorreu os 110 quilômetros que separam essa cidade da capital. Quando seus blindados ocuparam a Praça Terreiro do Paço, durante meio século símbolo do poder de Portugal, começava o golpe de Estado mais singular da história: militares que se rebelavam para impor a democracia pela ponta da baioneta.

Em poucas horas Caetano entregou o poder e foi levado ao aeroporto de Lisboa e embarcado com destino ao Brasil, onde faleceu em 1980. Desde então, Portugal não vivia uma situação de forte agitação social como agora, provocada pelas duras medidas do governo conservador do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho para reduzir o déficit fiscal, condição imposta pela troika de credores formada por Fundo Monetário Internacional, União Europeia e Banco Central Europeu.

Entre estas políticas se destacam o aumento generalizado de impostos, o fim da saúde gratuita, altas nas tarifas de gás, eletricidade e dos combustíveis, da passagem no transporte público e das matrículas e da cota mensal para os estudantes de escolas do Estado. Também está em curso uma reforma do Código do Trabalho que facilitará as demissões, eliminará bônus, limitará os subsídios por desemprego, retirará feriados, reduzirá os dias de férias obrigatórias e permitirá o aumento do horário de trabalho.

Em seu discurso para milhares de manifestantes de diversas gerações, Lourenço recordou às autoridades atuais que “o governo não é do eleito mas do eleitor, e que, portanto, não podem vender o país ao poder econômico e financeiro”. “Os eleitos já não representam a sociedade portuguesa”, quando tentam “legitimar a ditadura dos mercados, porque as pessoas não deram ao parlamento o poder de entregar esses poderes”, afirmou o oficial da reserva aos manifestantes, onde se destacaram os de mais idade que viveram a época revolucionária.

Devido às medidas draconianas impostas pela troika, Portugal “agora é um protetorado” que vive sob as ordens dos “projetos de Merkozy”, ironizou Lourenço em alusão ao poder real na União Europeia, exercido pela chefe do governo alemão, Angela Merkel, e pelo presidente da França, Nicolas Sarkozy. “Não fazemos alarde de sermos os salvadores da nação, mas dizemos que os militares sabem como se manter firmes na defesa de nosso povo”, concluiu.

Por sua vez, Soares destacou que, graças à Revolução de Abril, “tudo mudou e não há comparação com o passado de pobreza, guerra e ditadura no qual Portugal esteve ‘orgulhosamente só’ (frase célebre de Salazar) durante 48 anos de crueldades”. A democracia pluralista implantada pela Revolução “teve grande influência no estabelecimento de muitas democracias, especialmente na Espanha, Grécia e América Latina, sem excluir nosso querido Brasil, naquele momento também dominado por uma ditadura” (1964-1985), acrescentou.

Porém, prosseguiu o ex-presidente, “agora vivemos uma crise que veio de fora, dos Estados Unidos e do resto da Europa, que tem muito a ver com a incapacidade de muitos líderes deste continente, que creem cegamente na austeridade e não se preocupam com o crescimento exponencial do desemprego e nem com a paralisia das economias em recessão”.

Soares explicou à IPS que sua atitude de protesto neste aniversário é “em solidariedade aos heróis de abril”, em um momento que o governo de Passos Coelho está “destruindo conquistas sociais como seguridade social, educação e saúde”, mediante privatizações e limitação dos direitos dos portugueses. Para o ex-presidente, a austeridade imposta pela troika leva ao “empobrecimento de milhões de portugueses, o que não nos conduz a parte alguma, ou, melhor dizendo, nos leva a que cada ano estejamos de mal a pior”. Envolverde/IPS