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Limpeza étnica impune no Paquistão, a “terra dos puros”

Protesto pelo assassinato de xiitas hazaras em Quetta, no Paquistão. Foto: Altaf Safdari/IPS
Protesto pelo assassinato de xiitas hazaras em Quetta, no Paquistão. Foto: Altaf Safdari/IPS

 

Karachi, Paquistão, 3/7/2014 – Passaram dois anos desde que Quwat Haider, de 24 anos, sobreviveu a um atentado no Paquistão, mas o integrante da perseguida minoria étnica hazara ainda tem dificuldade para contar os fatos que mudaram sua vida. “Não gostaria que meus piores inimigos vivessem o que vivi naquele 18 de junho de 2012”, disse à IPS este jovem oriundo da província do Baluchistão.

Como todos os dias, ele, sua irmã e três primos entraram em um ônibus às 7h45 da manhã com destino à Universidade de Informática e Ciências da Gestão do Baluchistão, em Quetta, capital da província. Bem na hora de descerem, um automóvel carregado de explosivos se chocou contra o coletivo.

“A única coisa de que me lembro antes de ter desmaiado é de um forte golpe na cabeça ao cair no chão. Quando me recuperei ouvi gritos à minha volta. As pessoas desciam do ônibus, temendo que explodisse. Também saí, ainda cambaleante”, recordou Haider. Surpreendentemente, não ficou ferido gravemente e pôde levar sua irmã e seus primos ao hospital.

Outros não tiveram tanta sorte. Dos aproximadamente 70 estudantes hazaras que viajavam no ônibus naquela manhã, quatro morreram na hora e dezenas ficaram gravemente feridos pela explosão. Não era a primeira vez que um grupo de hazaras sofria ataque por sua origem étnica, e os especialistas temem que não será a última.

Um informe do dia 30 de junho da organização de direitos humanos Human Rights Watch, intitulado Somos os Mortos em Vida: Os Assassinatos de Xiitas Hazaras no Baluchistão, Paquistão, documenta os ataques sistemáticos que essa comunidade sofreu entre 2010 e o começo de 2014.

A organização registrou ao menos 450 assassinatos da minoria xiita no Paquistão em 2012 e 400 no ano seguinte. Aproximadamente 25% das vítimas de 2012 e quase a metade de 2013 eram hazaras do Baluchistão, onde vivem cerca de oito milhões de pessoas, menos de 5% dos 186 milhões de habitantes do país, em sua maioria sunitas.

Os hazaras são um povo de traços mongóis e de idioma persa que emigrou do centro do Afeganistão há mais de um século, e sua maioria é xiita. Calcula-se que no Paquistão residam entre 300 mil e 400 mil, em sua grande maioria em Quetta. A organização não governamental Minority Support Pakistan diz que os xiitas são aproximadamente 20% da população total, sunitas em sua maioria.

A perseguição sistemática aos hazaras começou em 2008, e com fatos arrepiantes: peregrinos a caminho do Irã foram arrancados dos ônibus em que viajavam e mortos ao lado da estrada, famílias inteiras morreram depois da explosão de bombas em concorridos mercados ou em procissões religiosas, outros foram atacados enquanto viajavam para o trabalho ou escolas, ou, ainda, enquanto rezavam nas mesquitas.

A Lashkar-e-Jhangvi (LEJ), uma proscrita organização extremista sunita, que aparentemente tem fortes vínculos com a organização islâmica Al Qaeda e com o movimento Talibã do Paquistão, reivindicou a maioria dos atos de violência, declarando-se inimiga jurada dos “infiéis” xiitas. Uma carta que circulou em 2011 em Mariabad, subúrbio de maioria hazara no leste de Quetta, dizia: “Paquistão significa terra dos puros, e os xiitas não têm o direito de estarem aqui. Nossa missão é a abolição desta seita e deste povo impuro, os xiitas e os xiitas hazaras, em cada cidade, cada povoado, cada recanto do país”.

Funeral das vítimas de homens armados, no cemitério hazara de Quetta, capital da província paquistanesa do Baluchistão. Foto: Altaf Safdar/IPS
Funeral das vítimas de homens armados, no cemitério hazara de Quetta, capital da província paquistanesa do Baluchistão. Foto: Altaf Safdar/IPS

 

A organização realizou uma série interminável de atentados, entre eles dois em janeiro e fevereiro de 2013, matando 180 pessoas. No primeiro, em 10 de janeiro, a explosão de duas bombas matou 96 pessoas em um clube de bilhar e deixou 150 feridos. Isto gerou protestos em todo o país em solidariedade às famílias de Quetta que se negaram a enterrar seus mortos. Três dias depois o governo nacional suspendeu a autoridade provincial e impôs o poder federal no Baluchistão

Apenas cinco semanas após o massacre, em 17 de fevereiro um carro-bomba explodiu em um mercado de verduras na vizinhança hazara de Quetta, matando 84 pessoas e ferindo 160. Defensores dos direitos humanos afirmam que a resposta do governo a cada assassinato é a mesma: as declarações dos funcionários são as adequadas, mas ninguém é preso e nenhum culpado é responsabilizado.

Zohra Yusuf, a presidente da independente Comissão de Direitos Humanos do Paquistão, que participou de uma missão de investigação em Quetta, em maio de 2012, está decepcionada com o governo: “Apresentamos a questão ao então governador e secretário em chefe do Estado e ambos reconheceram a repercussão. Mas não tinham resposta do motivo de não terem sido tomadas medidas contra a LEJ, que em quase todos os casos reivindicou os atentados”, pontuou à IPS.

Enquanto isso, agrava-se a situação dos hazaras. “Não há uma estrada, viagem de compras, ida à escola ou ao trabalho que sejam seguros para os hazaras. A incapacidade do governo para acabar com esses ataques é tão escandalosa quanto inaceitável”, afirmou Brad Adams, diretor para a Ásia da Human Rights Watch.

A Comissão de Direitos Humanos calcula que 30 mil hazaras fugiram do Paquistão nos últimos cinco anos, o que incentiva o tráfico de pessoas. Em seu desespero, os hazaras pagam enormes somas para que agentes lhes facilitem a viagem para Austrália e Europa, por perigosas vias marítimas sem nenhuma garantia de segurança.

Quetta, antes uma cidade pacífica, está repleta de soldados e postos de controle. Mais de mil militares do Corpo Fronteiriço do Baluchistão, organizados em 27 pelotões, patrulham as ruas junto com a polícia. Este nível de segurança faz com que a contínua perseguição à comunidade hazara seja ainda mais “terrível”, afirmou Ambreen Agha, um assistente de investigação do Instituto para a Gestão de Conflitos, de Nova Délhi, na Índia, já que ocorre “debaixo do nariz do exército paquistanês”.

Para hazaras como o sobrevivente Haider, seu “lar” se transformou em um lugar violento e perigoso. “Não há lugar no Paquistão que seja seguro para mim”, afirmou. Mas, ao contrário de seu irmão, que abandonou o país em 2010, ele não pensa em partir. “Somos só eu e minha irmã aqui. Quem cuidará de nossos pais se eu partir?”, perguntou.

A indiferença oficial

Em 8 de junho, 30 xiitas que regressavam de uma peregrinação foram assassinados em um atentado suicida em Taftan, uma remota zona do Baluchistão, na fronteira com o Irã. O ministro do interior, Chaudhry Nisar Ali Khan, assegurou que era “impossível garantir a segurança nos 800 quilômetros da estrada entre Quetta e Taftan”, por isso o governo proibiu o deslocamento por terra ao vizinho país e exortou os peregrinos a “viajarem por via aérea”.

Para Yusuf, da Comissão de Direitos Humanos, o comentário do ministro foi “insensível”, já que “nem todos podem pagar a viagem de avião”. O problema pode ser resolvido com a adoção de medidas contra os terroristas no Baluchistão e em outros lugares, e “não com restrições ao movimento das pessoas ameaçadas”, ressaltou. Envolverde/IPS