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Julgamento do Plano Condor para reanimar justiça lenta

Manuel Cordero, descoberto em 2009 por um jornalista do Canal 12 do Uruguai quando passeava no Brasil, violando sua prisão domiciliar. Foto: Canal 12

 

Buenos Aires, Argentina, 6/3/2013 – O julgamento pela coordenação criada pelas ditaduras da América do Sul nas décadas de 1970 e 1980 para perseguir e aniquilar opositores começou ontem em Buenos Aires, com o ex-ditador argentino Jorge Rafael Videla no banco dos réus, junto com outros 24 repressores. O processo está centrado na estratégia coordenada dos regimes autoritários de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai, idealizada para sequestrar, trasladar, torturar e assassinar qualquer pessoa que fosse vista como opositora.

Isso incluía guerrilheiros e militantes políticos, ativistas sindicais, estudantes e religiosos, jornalistas ou mesmo familiares que reclamavam por seus entes queridos. “É a primeira vez na América Latina que há julgamentos pelo Plano Condor, para discutir e perseguir penalmente os responsáveis, além dos processos que houve em algum país por casos específicos”, disse à IPS a advogada Luz Palmas, da Fundação Liga pelos Direitos Humanos (ex-Liga Argentina pelos Direitos do Homem).

O processo tem 25 acusados, entre eles Videla e outros ex-generais, com Reynaldo Bignone e Luciano Benjamín Menéndez. Também foi extraditado pelo Brasil para este julgamento o coronel da reserva uruguaio Manuel Cordero, que a justiça argentina requeria também por sua atuação no centro clandestino de detenção Automotores Orletti, em Buenos Aires. Para três acusados com problemas de saúde foi determinada a suspensão do processo, enquanto outros 15 originalmente imputados já morreram.

“Orletti foi uma base operacional do Condor. Os sequestrados estrangeiros eram levados para esse lugar, por isso se decidiu realizar julgamento oral das duas causas juntas”, explicou Palmas, que representa sobreviventes desse centro de detenção e também desaparecidos no contexto do plano repressivo transnacional. O processo, que pode se estender por dois anos, julga a privação ilegal da liberdade de 106 pessoas sequestradas e desaparecidas, na maioria uruguaias (48), mas também havendo argentinas, bolivianas, chilenas, paraguaias e uma peruana.

O caso teve início em 1999, quando ainda vigoravam as leis de ponto final e obediência devida na Argentina, que frearam a atuação judicial sobre crimes da última ditadura (1973-1983). Foi então utilizada a figura do desaparecimento forçado que, como crime permanente, não podia ser anistiado. Assim prosperou a causa até que, em 2005, a Suprema Corte de Justiça declarou inconstitucionais as duas leis, bem como os indultos aos ex-comandantes. Assim, a investigação somou imputados e vítimas e o caso foi acelerado. O processo também busca determinar se houve associação ilícita.

No caso Orletti, os crimes são “privação ilegal da liberdade e tormentos”. São 65 as vítimas, e delas há várias sobreviventes. Algumas, como a uruguaia Ana Inés Quadros, já depuseram em uma primeira fase do processo, realizada em 2010, contra quatro repressores que pertenciam a serviços de inteligência argentinos. Quadros contou na época que fora sequestrada em Buenos Aires em julho de 1976 e levada para Orletti, onde Cordero a torturou e a violou. Depois foi transferida para um centro ilegal de detenção no Uruguai, e mais tarde acabou solta.

Entretanto, Cordero só pode ser julgado por privação ilegal da liberdade no contexto do Plano Condor, e não pelos crimes cometidos em Orletti, isso porque a justiça brasileira não concedeu sua extradição para esta segunda causa. Para Lorena Balardini, coordenadora da área de investigação do Centro de Estudos Legais e Sociais da Argentina (Cels), este “é o maior processo já realizado até agora na região referente ao Plano Condor e pode servir de impulso para outros países que estão lentos ou tiveram retrocessos”.

No Uruguai, por exemplo, houve um “retrocesso”, disse Balardini à IPS se referindo à decisão do Supremo Tribunal de Justiça desse país que, em 22 de fevereiro, declarou inconstitucional uma lei que caracterizava como crimes de lesa humanidade, e, portanto, imprescritíveis, os crimes cometidos durante a repressão ditatorial (1973-1985). “Este julgamento é uma maneira de tornar visível estes fatos e julgá-los sob a ótica da coordenação entre ditadores”, afirmou Balardine. Para isso, o Cels, representante legal de várias vítimas, centrou sua estratégia em casos exemplares nos quais se prova essa articulação.

Por exemplo, o argentino Marcelo Gelman – filho do poeta Juan Gelman – e sua mulher, María Claudia García Irureta Goyena, sequestrados em Buenos Aires em 1976 quando ele tinha 20 anos e ela 19 e estava grávida de sete meses. Marcelo foi assassinado e seu corpo encontrado em 1989, mas María Claudia foi enviada de Orletti para o Uruguai, onde deu à luz a Macarena Gelman, que recuperou sua identidade em 2000 aos 23 anos. A mãe continua desaparecida.

O Cels também vai reclamar pelos argentinos Horacio Campiglia e Susana Pinus, sequestrados em 1980 no aeroporto internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, e supostamente levados para a Argentina, onde desapareceram. No contexto do Plano Condor, houve outros casos de ressonância que foram investigados em causas específicas, como os assassinatos em Buenos Aires dos legisladores de oposição uruguaios Zelmar Michelini e Héctor Gutiérrez Ruiz, em maio de 1976, e do ex-presidente boliviano Juan José Torres, cometido dias depois.

Segundo explicou à IPS a advogada Carolina Varsky, diretora de litígio do Cels, estes crimes não foram integrados ao processo Condor, que foi instruído procurando evitar as restrições impostas pelas leis de anistia e, por isso, só foram citados crimes permanentes, como o desaparecimento forçado. Sobre o papel central dentro do Plano Condor da Direção de Inteligência Nacional do Chile (Dina), a polícia secreta do regime do general Augusto Pinochet (1973-1990), Varsky lamentou não ter sido possível avançar no julgamento dos autores intermediários ou diretos da repressão.

Para progredir na investigação, foi relevante que o advogado e ativista paraguaio Martín Almada encontrasse, em 1992, os Arquivos do Terror em uma dependência policial de Assunção, com anotações dos movimentos de vítimas do Condor nos sete países. Outra importante prova foram os documentos desclassificados pelo Departamento de Estado norte-americano, em particular um datado de 1976, em que um agente do Escritório Federal de Investigações (FBI) descrevia as ações coordenadas das ditaduras sul-americanas, que podiam chegar “até ao assassinato”. Envolverde/IPS