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HIV/aids pede uma revisão das desvantagens sociais em Cuba

Promotores de saúde realizam atividades de prevenção contra o vírus HIV em um bairro de Havana, em Cuba. Foto: Jorge Luis Baños/IPS
Promotores de saúde realizam atividades de prevenção contra o vírus HIV em um bairro de Havana, em Cuba. Foto: Jorge Luis Baños/IPS

 

Havana, Cuba, 3/10/2014 – Poucos habitantes do bairro Centro Habana, na capital de Cuba, sabem que seu vizinho e professor de arte Mario Hernández vive há mais de 15 anos com o vírus HIV, causador da aids. “Ocultar meu diagnóstico também é a única maneira de não divulgar que sou gay. Quero evitar estigmas”, explicou à IPS este homem de 62 anos, de baixa estatura e com o rosto sulcado de rugas.

Para resguardar seus segredos, Hernández inventa evasivas para familiares e amigos cada vez que precisa se internar no Sanatório de Santiago de Las Vegas, o primeiro de seu tipo em Cuba e encravado em uma antiga propriedade no sul da capital. Disse se sentir bem acolhido nesse centro, que atende a população soropositiva de Havana, a província mais afetada do país.

“Nunca falto às capacitações e intercâmbios sobre HIV que oferecem aos pacientes e com frequência peço a palavra para falar sobre nossos problemas”, afirmou Hernández, que estima que “dos homossexuais quase não se fala nos meios de comunicação. Mas, quando se trata da aids, se referem mais às pessoas que têm a doença do que ao vírus. Isso contribui para que se associe a enfermidade aos homossexuais.

A aids obrigou Cuba a olhar-se no espelho e enfrentar problemas silenciados como os direitos dos não heterossexuais e de outros que pareciam resolvidos, como igualdade de gênero e prostituição. “A discriminação das orientações sexuais diversas deve continuar a ser enfrentada para deter as novas infecções”, opinou à IPS o gerente de uma livraria Jorge Luis Estrada, que há 18 anos realiza tarefas de prevenção em saúde em Villa Clara, 268 quilômetros a leste de Havana.

Cuba não pôde reverter o sustentado crescimento dos novos diagnósticos detectados a cada ano, embora ostente uma baixa prevalência de 0,1%. Ao final de 2013, estavam registradas 16.479 pessoas soropositivas entre os 11,2 milhões de habitantes. Neste país socialista, os serviços de saúde são gratuitos, incluídos os fornecidos aos soropositivos, e igualmente o tratamento antirretroviral.

Ativistas e especialistas insistem mais nos fatores sociais, como a homofobia, que tornam vulneráveis os homens que se relacionam sexualmente com outros homens (HSH), onde se concentra mais de 70% da epidemia. Na verdade, Cuba foi o único dos países mais afetados do Caribe insular a registrar mais casos novos em 2013 do que em 2005, segundo o The Grap Report, último informe do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids, embora sem fornecer o dado específico.

Ao comparar as cifras dos dois anos, o estudo divulgado em julho mostra que as novas infecções diminuíram 44% no Haiti, 61% na República Dominicana, 42% na Jamaica e 32% em Trinidad e Tobago. Em todo o Caribe insular, vivem atualmente 250 mil portadores registrados. O Haiti possui 55% desse total, República Dominicana 18%, Jamaica 12%, Cuba 6% e Trinidad e Tobago 5%.

“O estigma, a discriminação, a pobreza, a violação dos direitos humanos e a homofobia são a base das causas dessa epidemia”, pontuou à IPS o ativista Omar Parada, fundador do Projeto HSH-Cuba, uma rede nacional de promotores voluntários.

Quando o HIV chegou, Cuba teve que falar dos gays, bissexuais e transexuais, pesquisar suas características e situação social. Para o trabalho de prevenção, até ao nível municipal, se iniciou o mapeamento dos lugares de encontro dos HSH para ter sexo espontâneo ou comercial. Na época ainda era muito recente a situação de homofobia institucional que marcou os anos 1960 e 1970 em Cuba.

Rapazes que se negavam a prestar o serviço militar ativo por diversos motivos e os homossexuais eram levados para as Unidades Militares de Ajuda à Produção, campos de trabalho conhecidos pela sigla Umap, que existiram entre 1965 e 1968. Inclusive a legislação local condenou “a ostentação pública da homossexualidade” até a década de 1990. A ilha permaneceu longo tempo atrasada em matéria de promoção dos direitos das pessoas LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais), que ganhou impulso a partir de 1969.

A resposta à aids serviu também de ponte para o surgimento de associações LGBTI, como o Projeto HSH-Cuba, em 2000, e o Trans Cuba, um ano depois, embora sua missão fosse reunir promotores voluntários para se integrarem à prevenção e ao controle da epidemia. As duas redes estão vinculadas, respectivamente, aos estatais Centro Nacional de Prevenção de Doenças Sexualmente Transmissíveis e o HIV/aids e Centro Nacional de Educação Sexual (Cenesex).

Segundo especialistas, essas iniciativas abriram caminho para que, em 2007, tomasse impulso a campanha nacional contra a homofobia organizada pelo Cenesex ao longo do ano, com um auge no dia 17 de maio, Dia Internacional Contra a Homofobia e a Transfobia. Observadores qualificam de “incipiente” o ativismo LGBTI local, cujo êxito mais significativo é o Código do Trabalho, vigente desde este ano, que é, na prática, a primeira lei antidiscriminatória, ao proibir explicitamente a segregação por orientação sexual no âmbito trabalhista.

Entretanto, o parlamento não aprovou a proposta da deputada e diretora do Cenesex, Mariela Castro, de proteger explicitamente o direito ao emprego das pessoas soropositivas e transgênero. O Ministério da Saúde Pública alertou que, em 2013, foram contados oito novos diagnósticos de mulheres transexuais com HIV, um número considerável pelo tamanho desse segmento.

A médica Lucía San Martín recordou o quanto eram vulneráveis, no começo da epidemia, as trabalhadoras sexuais ou as mulheres sem estudo nem emprego. “A mulher com HIV/aids se superou graças aos programas de apoio”. Para esta médica, que trabalha na clínica da capital especializada em HIV/aids, o aumento de mulheres com o vírus, que representam 19% do coletivo afetado, aponta que é necessário um trabalho maior no empoderamento feminino na vida privada, e não somente no espaço público.

“Sempre foram fatores de risco famílias disfuncionais, pobreza, alcoolismo, drogas e prostituição, embora em Cuba tenham sido diagnosticadas desde 1986 pessoas de todas as camadas sociais, sobretudo nos últimos cinco anos”, disse Estrada. Legalmente, o comércio sexual é proibido em Cuba, assim como a produção e difusão de pornografia. A prostituição em si mesma não é um crime, mas o Código Penal pune o proxenetismo e o tráfico de pessoas com penas que vão do confisco de bens a até 20 anos de prisão.

Na clandestinidade, e com mais força no começo da pertinaz crise econômica que o país vive desde 1991, o comércio sexual resistiu aos intensos controles policiais e aos programas educativos. Até inclui novos papéis, como as jineteras (prostitutas para turistas estrangeiros) e os pingueros (homens que oferecem serviços a outros homens). Envolverde/IPS