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HIV/aids deixa à mostra iniquidades de gênero em Cuba

Folhetos e preservativos em um “carrinho da vida”, parte das ações do Centro Nacional de Educação Sexual de Cuba, para conscientizar sobre o HIV/aids. Foto: Jorge Luis Baños/IPS
Folhetos e preservativos em um “carrinho da vida”, parte das ações do Centro Nacional de Educação Sexual de Cuba, para conscientizar sobre o HIV/aids. Foto: Jorge Luis Baños/IPS

 

Havana, Cuba, 6/5/2014 – Os contos de amor, confiança e entrega ao parceiro se esfumaçaram para a cubana Mayda Torres em 1992, quando exames de rotina para começar em um novo emprego indicaram que tinha o vírus da deficiência imunológica humana (HIV). “Tinha uma relação estável. Não era infiel. Tampouco havia tido antes uma doença sexualmente transmissível (DST)”, contou à IPS essa mulher de 49 anos.

“Quando cheguei ao sanatório (de Santiago de Las Vegas, em Havana) vi com assombro que meu marido estava ali. Era portador e nunca me contou”, recordou Torres, que atualmente é promotora de saúde sexual. Às mulheres “se deve falar de preservativos e DST, mas também sobre como deixar de lado o romantismo e pôr as cartas na mesa com relação ao seu parceiro”, afirmou Torres. “Hoje ninguém está seguro de nada”, lamentou essa sobrevivente de uma época em que ainda não existiam tratamentos contra o HIV, causador da aids.

O número de cubanas com HIV/aids cresceu nos últimos anos, embora sejam poucos e dispersos os dados públicos sobre seu impacto entre as mulheres, nesse país de 11,2 milhões de habitantes. Em 2010, foram constatadas cerca de 2.787 mulheres soropositivas acima de 15 anos, enquanto em 2011 foram 3.013 na mesma faixa etária, segundo o Ministério de Saúde Pública.

Esse Ministério também revelou que as mulheres representaram 20% dos 14.648 portadores de HIV registrados ao fim de 2012, com “altas em alguns municípios e localidades”. No ano passado, as mulheres constituíram 18,5% dos 2.156 novos casos detectados, que aumentaram para mais de 16.400 as pessoas com o vírus.

Nancy Mora, integrante da coordenação nacional do Grupo de Prevenção da Aids (GPSIDA), confirmou à IPS que aumenta o número de mulheres portadoras no país. Esse cenário reaviva o temor de que em Cuba a epidemia se feminize, como ocorre na região do Caribe, onde são 53% dos adultos soropositivos. Segundo a ONU Mulheres, elas representaram em 2013 mais de 60% das pessoas jovens e 54% das adultas com HIV/aids no mundo. A África subsaariana, com 72% de mulheres portadoras, apresentou o indicador mais crítico.

Em Cuba, a aids se comporta de modo diferente. O HIV/aids prevalece no grupo de 15 a 49 anos, sobretudo nos homens que praticam sexo com outros homens, que são mais de 70% do grupo infectado. Em 99% dos casos, a transmissão é sexual. As autoridades desse país socialista mantém quase eliminada a transmissão de mãe para filho e pelo sangue e seus derivados.

Cuba exibe uma das menores incidências da América Latina, segundo a Onusida, e os tratamentos contra o HIV/aids são gratuitos, como o resto do atendimento de saúde. Mas a quantidade de portadores do vírus cresce lentamente e de modo sustentado, e entre eles as mulheres, os jovens e inclusive pessoas da terceira idade figuram entre os grupos vulneráveis que demandam estratégias de prevenção mais específicas.

Mora, que também é enfermeira, indicou à IPS que “o aumento registrado na população feminina tem que ser visto à luz do enfoque de gênero. Temos uma cultura bem machista em que a mulher costuma se subordinar de alguma maneira na relação de casal”, afirmou, enquanto com passos rápidos atendia em uma sala do Sanatório de Santiago de Las Vegas.

Situado em um antigo casarão na periferia de Havana, o hospital, que foi o primeiro a cuidar da doença, continua sendo o centro de referência para as pessoas com HIV/aids e guarda a história da enfermidade no país. A integrante do GPSIDA, uma rede nacional de promotores voluntários, apontou que “há uma grande preocupação com que a mulher seja diretiva, se insira na vida pública. Mas não se fala da importância de assumir a direção do seu corpo, a sexualidade e as relações de casal”.

As cubanas recebem salários iguais aos dos homens, têm direito ao aborto legal e seguro, quase uma exceção na América Latina, e constituem 64% dos que se formam na universidade. Mas o machismo persiste. Sobre os ombros femininos recai o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos e doentes, e as mulheres costumam ser vistas estereotipadas como objetos sexuais. “Se ela propõe usar camisinha pode ser criticada, até mesmo ser acusada de infiel”, afirmou Mora.

A seu ver, se desconhece que as mulheres são especialmente vulneráveis a contrair o HIV/aids, inclusive nas relações de casais estáveis. “Aos homens se permite, e até são educados para isso, serem infiéis e promíscuos. Ter amantes é visto como um êxito”, destacou Mora. Das 1.645 mulheres incluídas na última Pesquisa de Pessoas com HIV/aids, realizada em 2011 pelo Escritório de Estatísticas e Informação, 66% consideram que se infectaram por não usarem preservativo e 48% por terem confiado no parceiro.

A história da professora Roxana Echenique, que em 2001 soube ser soropositiva, é um exemplo de outra face oculta e muito polêmica da epidemia em mulheres. “Meu parceiro me contagiou. Minha primeira pergunta foi se mantivera relações com homens, mas sempre negou”, contou à IPS essa mulher de 43 anos, mãe de dois filhos, moradora de Havana, a área mais afetada pelo vírus. “Depois soube que era bissexual. Senti uma raiva imensa”, ressaltou. A professora destacou o dano que provocam os preconceitos e mitos em relação à mulher com HIV/aids. Por exemplo, “se pensa que somente acontece com prostitutas ou promíscuas”, afirmou.

Um estudo feito entre 2012 e 2013 por uma equipe de pesquisadoras com 30 mulheres trabalhadoras do lar no bairro de Luyanó, em Havana, concluiu que tinham baixa percepção do risco do HIV, sabiam pouco sobre a vulnerabilidade feminina e nem todas identificavam o sexo seguro com método preventivo. Além disso, 19,1% das mulheres detectadas em 2013 não estavam vinculadas a nenhuma atividade profissional no momento do diagnóstico.

“Aconselho todas as cubanas a usarem preservativos. Essa doença é muito dura, e mais ainda para as mulheres”, afirmou Echenique, que não esquece o tempo em que ficou separada dos filhos, na época pequenos, internada no sanatório de Havana. Envolverde/IPS