Sociedade

Fístula obstétrica persegue mulheres paquistanesas

Naz Bibi espera a cirurgia que vai curar sua fístula obstétrica no Hospital para Mulheres Koohi Goth, no Paquistão. Foto: Zofeen Ebrahim/IPS
Naz Bibi espera a cirurgia que vai curar sua fístula obstétrica no Hospital para Mulheres Koohi Goth, no Paquistão. Foto: Zofeen Ebrahim/IPS

 

Karachi, Paquistão, 20/6/2014 – Mohammad Lalu, de 50 anos, procedente da remota aldeia de Dera Bugti, na província do Balochistão, no Paquistão, que trabalha em uma pedreira, há 30 anos procura um lugar onde curar sua mulher, Naz Bibi, de uma fístula obstétrica. Sentada ereta sobre um lençol de plástico que cobre uma cama do hospital, Bibi contou à IPS que “viajamos dois dias sem descanso para chegarmos aqui e gastamos 12 mil rúpias (US$ 120) só em ônibus”. É uma quantia enorme para uma família com recursos extremamente modestos em um país onde a renda média é inferior a US$ 1,2 mil por ano.

Mas para Lalu e sua mulher vale a pena o gasto se Bibi puder ser curada do terrível mal que a afeta. A fístula obstétrica é um problema quase inexistente nos países de renda média e alta, mas é comum em muitos lugares da África e Ásia. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que quase três milhões de mulheres a sofrem a cada ano no mundo. Não há dados oficiais, mas os especialistas estimam que entre quatro mil e cinco mil mulheres têm esse problema no Paquistão.

A fístula aparece após um trabalho de parto prolongado, quando a cabeça do bebê pressiona o canal de parto e dilacera as paredes do reto e da bexiga, o que gera incontinência urinária e fecal. Os médicos explicam que as jovens, cujos corpos não alcançaram a maturidade suficiente para suportar o trabalho de parto são as mais vulneráveis, bem como as que não estão bem alimentadas ou vivem longe de um centro de saúde equipado para atendê-las.

Esse problema de saúde faz com que as mulheres percam o controle do esfíncter, acarretando enorme estigma devido ao permanente odor de matéria fecal que emana de seus corpos, que as marginaliza de suas comunidades e famílias e as obriga a sofrer em silêncio. Isso é especialmente traumático para as mães jovens que acabam passando a melhor parte de suas vidas com pouco ou nenhum contato com o mundo exterior.

Lalu contou à IPS que os problemas de Bibi começaram pouco depois de dar à luz um bebê sem vida na adolescência, quando estava casada com seu primeiro marido. “Sou seu segundo esposo. Seus pais a casaram comigo depois que o primeiro a abandonou, mas não revelaram que sofria desse problema espantoso”, afirmou. Ao contrário de muitos homens, Lalu não a abandonou, e se esforçou para encontrar o tratamento necessário. Não foi fácil, pois a fístula obstétrica só é tratada mediante cirurgia de reconstrução, cujo custo é proibitivo para milhares de mulheres.

Koohi Goth é um dos 12 centros criados no contexto do Projeto Fístula, do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), que trata o problema gratuitamente. Após oito anos, e com a colaboração do Fórum Nacional do Paquistão para a Saúde das Mulheres (PNFWH), foram capacitados 38 médicos para realizar a intervenção cirúrgica. É um número ínfimo comparado com a dimensão da crise que atravessa a saúde materna nesse país, lamentam os especialistas.

Segundo a última pesquisa de Demografia e Saúde, 276 em cada cem mil mulheres morrem durante o parto nesse país de 183 milhões de habitantes. “Todas essas mortes são 100% evitáveis se pudermos oferecer atendimento de qualidade e deter o casamento infantil”, argumentou à IPS Sajjad Ahmed, diretor do Projeto Fístula. Ele afirmou que, se se conseguir atrasar a idade com a qual as mulheres engravidam pela primeira vez, será um enorme avanço para evitar problemas de saúde como a fístula obstétrica.

Segundo o UNFPA, “tanto por razões fisiológicas como sociais, as mães entre 15 e 19 anos têm o dobro de probabilidades do que as da faixa etária dos 20 anos de morrer durante o parto. O trabalho de parto obstruído é especialmente comum entre as que parem pela primeira vez sem ter alcançado a maturidade”. Mas será muito difícil mudar essa mentalidade que não vê nada de errado no casamento infantil, especialmente nas zonas rurais do Paquistão.

Shahbano, de 13 anos, da aldeia de Sanghar, na província de Sindh, ocupa a cama ao lado da de Bibi. Ela contou à IPS que a casaram aos 11 anos e sofreu fístula obstétrica há três semanas, após seu primeiro parto, que foi prolongado. Felizmente, ela e o bebê sobreviveram ao calvário e ela espera que tudo corra bem na cirurgia para não sofrer incontinência para o resto de sua vida. “Em nossa cultura, quando a menina menstrua pela primeira vez, seus pais são obrigados a casá-la”, explicou à IPS o marido de Shahbano, Abid Hussain.

Nem ele nem sua mulher adolescente sabiam que em maio a assembléia provincial de Sindh aprovou a Lei para Deter o Casamento Infantil, que proíbe o matrimônio de menores de 18 anos. A infração à lei é punida com três anos de prisão ou multa de US$ 450. Em 1929, a idade legal para casar era de 14 anos, e em 1965 subiu para 16. Atualmente, Sindh é a única província paquistanesa que estabelece os 18 anos como idade mínima para se casar, o que gerou forte oposição de organizações religiosas.

Maulana Muhammad Jan Sherani, assessor parlamentar e presidente do Conselho de Ideologia Islâmica, declarou que “há pessoas que querem agradar a comunidade internacional indo contra as práticas e os preceitos islâmicos”. Para ele, “esse tipo de comentário é obstáculo em nossa luta contra o casamento infantil e a gravidez precoce”.

Se pudesse dar um conselho a meninas como Shahbano lhes diria que eduquem seus filhos, e especialmente suas filhas, pontuou Ahmed. Para ele, “demorará uma geração para reverter essa situação, mas a educação automaticamente produzirá uma mudança cultural capaz de retardar os casamentos. É a única forma que vejo para erradicar esse problema”.

Atualmente, esse país tem capacidade para atender apenas dois mil casos de fístula obstétrica, mas os médicos acabam operando somente entre 500 e 600 mulheres por ano. A baixa quantidade de intervenções, segundo Ahmed, ocorre porque as pessoas não sabem que podem se tratar e não buscam ajuda. Muitas mulheres vivem em zonas rurais sem televisão, nem rádio, nem telefone celular, o que dificulta as possibilidades de conscientizar sobre o problema.

Para atender a essa dificuldade, os hospitais criaram as “trabalhadoras da saúde”, mulheres que vão de casa em casa nas zonas rurais oferecendo informação sobre direitos e saúde sexual e reprodutiva. “Temos uma enorme brigada de quase cem mil trabalhadoras da saúde”, contou Ahmed. Elas só cobrem 60% do país, mas funcionam como ponte entre as populações rurais e os provedores de saúde nas cidades. Com esse esforço sustentado, talvez algum dia no Paquistão problemas como a fístula obstétrica sejam apenas uma lembrança ruim. Envolverde/IPS