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Estigma, última barreira da aids na América Latina

Rio de Janeiro, Brasil, 28/6/2011 – Os preconceitos e a violência são as principais barreiras à prevenção e ao combate da aids na América Latina, onde, entretanto, a epidemia está estabilizada. “A relativa estabilidade da doença se deve ao tratamento com medicamentos antirretrovirais nos países latino-americanos”, disse à IPS a coordenadora do grupo técnico de Direitos Humanos, Gênero e Diversidade Sexual do Grupo HIV/aids, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Mandeep Dhaliwal.

“Mas as estatísticas mostram que os homossexuais são 19 vezes mais susceptíveis à infecção do HIV”, acrescentou Dhaliwal. Ela é uma das organizadoras do Diálogo Regional para a América Latina da Comissão Global sobre HIV e Direito, que aconteceu na cidade de São Paulo nos dias 26 e 27, reunindo 120 participantes de 18 países para discutir os obstáculos para vencer a aids.

Este foi o quarto de sete Diálogos Regionais planejados para este ano a fim de elaborar ações e recomendações baseadas nos direitos humanos e em evidências de respostas eficazes ao HIV na África, América Latina, Ásia, Pacífico, Caribe, Europa Oriental, Oriente Médio e Norte da África e países de alta renda.

“O estigma vivido pelas populações de risco as empurra para a penumbra da sociedade porque não se sentem cômodas e protegidas para buscar tratamento”, disse Dhaliwal. “Precisamos de mais parâmetros para olhar esta população de risco, pois muitos dados são coletados com base nos heterossexuais. Os países demonstraram ser eficientes para reunir os recursos necessários, mas não para os segmentos de homossexuais e transgêneros”, acrescentou.

A cobertura de cuidados médicos e tratamento chega a menos de 20% destes grupos vulneráveis, nos quais também estão usuários de drogas e trabalhadores e clientes do comércio sexual, entre outros. O Pnud e o Fundo das Nações Unidas sobre HIV/aids (Onusida) criaram a Comissão Global em junho de 2010 para que conduzisse o debate mundial sobre as questões legais e de direitos vinculadas à pandemia.

A marginalização e a penalização dos soropositivos (portadores do HIV) são um dos aspectos que devem ser abordados no Diálogo Regional. Os especialistas também dirigiram o debate à revisão da legislação vigente. As leis variam em cada país, disse à IPS a coordenadora sobre HIV do Pnud na América Latina e no Caribe, Maria Tallarico. A região registra progressos efetivos em termos legislativos. “Nenhum país tem leis que proíbam ou penalizem a homossexualidade, mas apenas isto não é suficiente. Na prática legal, os mecanismos de regulação não são aplicados e os infratores não são punidos”, acrescentou.

Embora nenhum país latino-americano discrimine pessoas com HIV, isto ocorre a “título pessoal”. Segundo Tallarico, o Brasil conta com a iniciativa de “discriminação zero”, mas não há como medir seu desempenho. Em El Salvador, um decreto castiga a discriminação no serviço público, mas o “estigma está ligado a questões culturais. A sociedade civil afirma que ainda é difícil dizer que se precisa de atenção especializada, porque é necessário lidar com muita resistência e preconceito”, acrescentou a especialista.

Dhaliwal concorda que os contextos legais são parte das respostas para combater a doença. O problema é como garantir o respeito à lei e o acesso à justiça. “Nos demos conta que para uma resposta efetiva é preciso dirigir o ambiente legal. Na América Latina vemos boas leis em alguns casos, mas que não estão implementadas. É uma tarefa complexa porque é preciso entrecruzar a cultura, os princípios de moralidade, gênero e religião”, disse Dhaliwal.

Segundo dados da ONU, a epidemia de HIV na América Latina não mudou nos últimos anos. O numero total de pessoas que convivem com o vírus subiu de 1,1 milhão em 2001 para cerca de 1,4 milhão em 2009, devido à maior disponibilidade de antirretrovirais que reduzem a presença do vírus no organismo humano e prolongam a vida. Em 2009, houve cerca de 92 mil novas infecções na região, segundo a Onusida.

Tallarico disse que o perfil da epidemia está concentrado em grupos de risco localizados em segmentos mais pobres – de maior vulnerabilidade social ou com baixo nível de instrução –, em povos indígenas e na comunidade LGBT. Embora a maior quantidade absoluta de pessoas com HIV esteja nos países mais povoados (Brasil, Colômbia e Argentina), a proporção maior de incidência da doença fica com a América Central. “O perfil é de uma epidemia concentrada. Só em Belize se observa uma epidemia generalizada que supera 1% da população sexualmente ativa e adulta”, afirmou.

A coordenadora de HIV no Pnud destacou que o Brasil (com 190 milhões de habitantes, o país mais povoado da região), foi pioneiro na produção, no acesso e na distribuição gratuita de antirretrovirais. Embora numericamente concentre um terço das pessoas com HIV da região, apresenta uma das menores taxas de incidência de aids, de 0,6% para cada cem mil habitantes.

“Estimamos em cerca de 630 mil infectados no Brasil. Destes, 300 mil nem mesmo sabem que têm a doença”, disse à IPS o infectologista Dirceu Greco, diretor do Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatite Viral, do Ministério da Saúde. Os casos se concentram na faixa de 30 a 49 anos de idade. Entre os adolescentes de 13 aos 19 há mais contágios femininos. E os homossexuais têm uma exposição ao vírus 15 vezes superior ao da população geral.

A América Latina sofre de diagnóstico tardio, responsável pela maioria das mortes, e o Brasil não é exceção. A cada ano morrem 11 mil pessoas, muitas por não receberem tratamento oportuno, disse Greco. O diagnóstico precoce ainda é um desafio “por múltiplas razões”. O “Brasil é um país com o maior sistema público de saúde, mas tem um acesso primário muito complicado. É preciso melhorar a qualidade da entrada inicial na rede de saúde pública”, afirmou. Também falta orientação em muitos médicos sobre a necessidade de solicitar exames rotineiros de HIV. O programa governamental de prevenção é focado no publico gay, na distribuição de 500 milhões de preservativos ao ano e na educação sexual nas escolas.

Maria Tallarico disse que as terapias antirretrovirais devem começar antes e insiste na “necessidade de um esforço para tratar toda a população, já que há muitas pessoas que desconhecem que existe tratamento”. Em 1995, a sobrevivência de um soropositivo não passava de 58 meses, hoje já é estimada em 20 anos. Segundo Greco, se a doença é bem tratada não será a causa de morte de muitos portadores de HIV. “O diagnóstico precoce e a adesão ao tratamento aumentaram muito a sobrevida do paciente”, acrescentou.

No final da década de 1990, o Brasil adotou a política de distribuição gratuita de 20 medicamentos pelo Sistema Único de Saúde, que investe por ano cerca de US$ 400 milhões nesses remédios, dez deles produzidos no país. O sistema de saúde pública atende atualmente 200 mil pessoas com HIV/aids. Políticas semelhantes foram adotadas na maior parte da região, mas esta ainda enfrenta picos de dificuldade para obter e distribuir o coquetel antirretroviral.

“É preciso ter mecanismos eficazes para não interromper o tratamento. É muito grave quando a distribuição não funciona”, criticou Maria Tallarico. Em março o Brasil sofreu desabastecimento do medicamento atazanavir, utilizado por mais de 30 mil pessoas. Segundo Greco, tratou-se de um caso de logística. Envolverde/IPS