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“Em Portugal combatemos a doença, não o doente”

O êxito não é apenas pela despenalização, insiste o médico João Augusto Castel-Branco Goulão. Foto: Mario Queiroz/IPS

 

Lisboa, Portugal, 23/7/2012 – As políticas de Portugal diante das drogas estão ganhando visibilidade internacional desde que começou a apresentar resultados a decisão de despenalizar o consumo, adotada em 2001. O modelo português é usado como argumento em vários lugares do mundo, como Brasil e Uruguai, por especialistas e personalidades que se somam a uma campanha global da Organização das Nações Unidas (ONU) contra a estratégia de proibir e reprimir.

O arquiteto desta política, que cristalizou uma luta iniciada no final da década de 1970, é o médico João Augusto Castel-Branco Goulão, presidente do Instituto da Droga e da Toxicodependência e do Conselho de Administração do Observatório Europeu das Drogas e das Toxicomanias. A despenalização do consumo, embora enfrente resistência em setores políticos como a direita, foi possível por um “sentimento social favorável, foi algo que emanou da sociedade”, na qual quase cada família tinha um ente ou amigo com problemas de abuso, contou Goulão à IPS, em entrevista concedida em seu escritório.

IPS: Consumir drogas em Portugal continua proibido…

JOÃO GOULÃO: Sim. Mas deixou de ser um alto ilícito penal, suscetível de ser julgado nos tribunais e de fazer parte da ficha policial. Já não é mais objeto de prisão, mas uma infração administrativa, punida com multa em tribunais administrativos que chamamos de comissões para a dissuasão da toxicomania, com autoridade para aplicar estas sanções e que têm a particularidade de analisar os casos sob uma ótica de saúde para o cidadão consumidor.

IPS: A legislação portuguesa cumpre os acordos internacionais sobre drogas?

JG: Quando concebemos a atual despenalização, o contexto que o governo nos colocou estava determinado pelas Convenções da ONU. A despenalização mantém sanções na esfera administrativa, o que respeita as exigências dessas Convenções.

IPS: O êxito desta política é cada vez mais citado no resto do mundo. Quando começou?

JG: No início houve grande curiosidade. Depois, como não havia resultados para mostrar, o interesse caiu, e só a partir de 2009, com a divulgação de um informe internacional, reapareceu um enorme interesse, que se traduz em frequentes visitas de políticos, médicos, técnicos e jornalistas de todo o mundo. No entanto, o sucesso não é consequência apenas de despenalização. É um conjunto de políticas, tanto na redução na área da oferta quanto na da demanda, motivada por medidas de prevenção, tratamento, redução de danos e reinserção social.

IPS: Qual foi a gênese desse processo?

JG: Antes da revolução democratizante de 1974, praticamente não tínhamos problemas de drogas. Éramos uma sociedade completamente isolada pela ditadura (1926-1974) de tudo o que ocorria no mundo. Os jovens não podiam sair do país, exceto quando eram enviados à guerra colonial na África (1961-1974) e, por outro lado, não éramos um destino muito atraente para a juventude de outros países. Enquanto outras sociedades foram aprendendo paulatinamente a conviver com as drogas, nós não tivemos essa oportunidade. De repente, tudo mudou com a revolução. Por um lado, regressaram da África milhares de soldados e colonos, muitos deles com hábitos de consumo, que trouxeram para Portugal toneladas de substâncias. Por outro lado, consumir drogas incluía a ideia de liberdade e houve um afã generalizado de experimentação. Trouxeram esses produtos não para comercializar, mas para dar aos amigos. Porém, rapidamente surgiram organizações criminosas para explorar este novo mercado. Ignorávamos a diferença entre as drogas mais leves e a heroína, por exemplo. As primeiras campanhas dos anos 1970 foram de terror, tais como “droga, loucura, morte”. Tudo se complicou com o aparecimento do HIV/aids na década seguinte, que transformou o consumo de drogas no primeiro problema dos portugueses, com uma ou mais gerações completamente devastadas pelo vício e por doenças adquiridas por meio de seringas, uma criminalidade associada muito elevada e uma enorme visibilidade pública do fenômeno.

IPS: No começo, as respostas do Estado eram quase todas policiais.

JG: Porque se transformou em um assunto de criminalidade. As primeiras respostas, a instalação de centros de estudo e profilaxia não apareceram no âmbito da saúde pública, mas entre as competências do Ministério da Justiça. Diante disso, surgiram as primeiras respostas privadas, algumas extremamente lucrativas, com pessoas que se enriqueceram à custa deste fenômeno. E os consumidores de droga se converteram em vítimas, primeiro exploradas pelos traficantes e depois pelos tratamentos.

IPS: Quando começou a mudança?

JG: Entre 1986 e 1987 surgiram os primeiros centros do Ministério da Saúde e a partir daí se formou uma rede nacional para dar resposta ao problema, com os centros de atenção aos toxicômanos. Em 1997, assumi a direção nacional da rede de tratamentos. No ano seguinte, com uma comissão de dez peritos realizamos um informe que indicava caminhos quanto a políticas de prevenção, tratamento, redução de danos e reinserção social. Uma de nossas premissas é que o usuário abusivo é um doente e não um criminoso, é alguém que precisa de ajuda. Então, propusemos despenalizar o consumo, reforma debatida no parlamento em 2000, quando havia uma maioria de esquerda que aprovou a proposta, apesar da oposição da direita. A lei foi promulgada em 2001. Considerar o usuário um doente e não um criminoso teve grande repercussão na sociedade portuguesa, porque o fenômeno era transversal; era quase impossível encontrar uma família que não tivesse problema com um filho, um sobrinho, um primo, e que sabia que não era criminoso, mas alguém que precisava de apoio. Este sentimento favorável à despenalização foi algo que emanou da sociedade.

IPS: Quais são os êxitos mais significativos?

JG: Uma aproximação progressiva dos grupos mais desorganizados de consumidores às estruturas de tratamento. Antes as pessoas tinham medo de se aproximar, temendo ser denunciadas à polícia. Hoje vêm espontaneamente e não têm problemas em se identificar. Diminuiu o uso de todas as substâncias ilícitas nas camadas mais jovens da população. Houve uma drástica redução de drogas injetáveis e, como consequência, da transmissão da aids. Também houve queda da criminalidade associada à droga.

IPS: A crise econômica, o desemprego e a falta de futuro para os jovens constituem preocupação quanto a um ressurgimento do vício?

JG: Com a crise, apareceram alguns sinais de alarme. Reaparecem os “consumos do desespero”. Não se busca o prazer, mas o alívio das dificuldades mediante as drogas e o álcool. Muitos de nossos antigos pacientes que não conseguiram retomar suas vidas normais, com a obtenção de emprego, por exemplo, estão na primeira linha da fragilidade social. Na medida em que a onda de desemprego aumenta, eles são os primeiros descartados e, quando isso ocorre, veem o mundo que estavam construindo desmoronar como um castelo de cartas. A recaída aparece com muita frequência nesses casos. Envolverde/IPS

* Este é o primeiro de dois artigos sobre o modelo português de despenalização das drogas.