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Desigualdade resistente no celeiro latino-americano

O economista argentino Raúl Benítez destaca a persistente desigualdade latino-americana. Foto: FAO/Giulio Napolitano

Roma, Itália, 19/6/2013 – A julgar pelos reconhecimentos que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) acaba de entregar a 11 países latino-americanos e caribenhos, é fácil concluir que a região deu um passo de gigante para a erradicação da fome. É o rosto benigno da América Latina, junto com o crescimento econômico que experimentam muitos de seus países.

Contudo, um olhar mais detalhado no panorama alimentar e agrícola revela outra face, a da desigualdade, marcada pela crescente influência do oligopólio agropecuário industrial. O economista argentino Raúl Benítez, diretor do escritório da FAO para América Latina e Caribe, afirmou que, “apesar de nosso continente ter dados passos enormes contra a fome, também é o mais desigual do mundo”.

“Dos quase 900 milhões de pessoas que sofrem fome no mundo, 50 milhões são latino-americanos ou caribenhos”, disse Benítez à IPS durante a 38ª Conferência da FAO, que acontece entre os dias 15 e 22, em Roma. E a fome aparece em lugares como a Argentina, cuja população foi durante boa parte do século 20 uma das melhor alimentadas do mundo.

“Hoje em dia na Argentina, uma enorme quantidade de meninos e meninas sofrem a desnutrição da soja”, destacou Silvia Ribeiro, diretora para a América Latina do não governamental Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC), em referência ao principal cultivo para exportação desse país. “Há mais de 20 anos, com apoio de todos os governos nacionais, a Argentina permitiu a expansão maciça da soja na agricultura do país, deslocando a pecuária e outros cultivos, e também transformando a dieta cotidiana da população”, explicou Ribeiro.

Hoje em dia, “os argentinos não bebem leite de vaca, mas de soja, e não comem mais carne, a substituem por soja, uma dieta monótona que provoca desnutrição”, argumentou Ribeiro, cuja organização monitora o impacto de tecnologias emergentes e corporações sobre a biodiversidade, agricultura e os direitos humanos. Para esta ativista, também presente na Conferência na capital italiana, o reconhecimento da FAO a países latino-americanos por seus êxitos contra a fome “se baseia em uma análise parcial e enganosa”.

“É como se a FAO só visse o produto interno bruto, que reflete uma produção agrícola maior, mas ignorasse que essa maior produção é excludente socialmente, ecologicamente insustentável e beneficia com exclusividade as grandes multinacionais que produzem para exportar”, ressaltou Ribeiro. Benítez, por seu lado, respondeu que “a FAO só pode chamar a atenção para tais fenômenos e propor medidas; os Estados são soberanos e eles podem, ou não, adotar políticas com base em nossas propostas”.

Ribeiro também chamou a atenção para a expansão da agricultura geneticamente modificada. “O caso mais grave é o do milho mexicano, pois o governo liberou seu cultivo em benefício de várias companhias, como Monsanto e DuPont Pioneer”, ressaltou. O milho é componente essencial da dieta da população mesoamericana, do México à Costa Rica. Além disso, o México “é a origem geográfica mundial” deste grão. Nesse país, “o milho é mais do que alimento, é pilar essencial da identidade nacional e da tradição”, acrescentou a ativista.

Países em situações semelhantes, como a China com a soja, e regiões do sudeste asiático com o arroz, proíbem o cultivo de variedades transgênicas para salvaguardar seu patrimônio biológico, pontuou Ribeiro. “Algo semelhante o México deveria fazer com o milho”. Por outro lado, pesquisas indicam que o milho transgênico pode ser nocivo para a saúde.

“Uma equipe de cientistas franceses mostrou que o milho transgênico causou câncer em ratos”, acrescentou Ribeiro. “Outro estudo, em poder da agência europeia sobre segurança em alimentos, mostra que a maioria dos cultivos aprovados nos Estados Unidos (54 de 86) contém partes de um vírus que não foram reconhecidas ao serem aprovados e que podem ter efeitos negativos em plantas, animais e humanos”, ressaltou.

Benítez afirmou que “na FAO estamos conscientes de que o monopólio de terra e os grandes complexos agrícolas podem provocar exclusão social e serem insustentáveis ecologicamente. Os governos têm que ponderar os benefícios no curto prazo com os custos de longo prazo, que podem ser muito maiores, e decidir a partir daí”. Envolverde/IPS